O universo complexo de ‘O Problema dos Três Corpos’
Uma adaptação inteligente e intrigante dos mesmos criadores de Game Of Thrones movimentou opiniões de analistas e críticos de cinema bem como público e a comunidade científica não apenas pelo seu título intrigante, mas também pelo tema central.
Paulo Bocca Nunes
A adaptação do aclamado romance de ficção científica, O Problema dos 3 Corpos, do escritor chinês, Cixin Liu, estreou na Netflix em 21 de março de 2024, consistindo em oito episódios que combinam habilmente ação, drama, suspense, mistério e conceitos científicos com saltos temporais intrigantes. A série desafia a noção de ser “inadaptável” e é vista como um investimento sólido pela Netflix. Sob a direção de David Benioff e DB Weiss, conhecidos por seu trabalho em Game of Thrones, além de Alexander Woo, a narrativa incorpora liberdades criativas, incluindo modificações significativas para garantir sua eficácia na tela.
A trilogia de Liu foi inicialmente considerada inadaptável devido à sua abordagem complexa da ficção científica, que inclui conceitos de física avançada e velocidades extremas, semelhantes às partículas nos aceleradores, fundamentais para o mistério central de “O Problema dos Três Corpos”. A questão permanece: como traduzir essa história para um público acostumado a narrativas mais simplificadas, como naves espaciais e invasões alienígenas?
Os criadores da série enfrentaram esse desafio com grandes mudanças, incluindo a introdução de personagens inteiramente novos para fornecer uma base sólida para a trama. No entanto, apesar dos esforços, alguns elementos não conseguiram encontrar um equilíbrio satisfatório entre a complexidade científica, os conflitos dos personagens e a ação que impulsiona a narrativa até o desfecho final.
SOBRE OS LIVROS
O Problema dos 3 Corpos é uma trilogia premiada de livros (The Three-Body Problem) escrita pelo autor chinês Liu Cixin. A trilogia é composta pelas seguintes publicações: O Problema dos 3 Corpos (2008), A Floresta Sombria (2008) e Fim da Morte (2010). A série de livros ganhou diversos prêmios, incluindo o Prêmio Hugo de Melhor Romance em 2015 para O Problema dos Três Corpos, o que tornou Liu Cixin o primeiro autor chinês a ganhar tal honraria.
ENTENDENDO A HISTÓRIA
Tudo inicia na China, em meio à sua Revolução Cultural, ao final dos anos de 1960. A personagem Ye Wenjie (Zine Tseng), uma jovem cientista, testemunha o julgamento sumário de seu pai por ensinar a Teoria da Relatividade de Einstein e a Teoria do Big Bang nas suas aulas na faculdade. Ele é morto, Ye Wenjie é presa e enviada a um antigo radiotelescópio de onde nunca mais sairá. Depois de fazer uma descoberta, ela envia uma mensagem para o espaço em busca de ajuda extraterrestre para a humanidade.
Sua mensagem é interceptada por uma civilização alienígena que vive em um sistema planetário com três sóis, o que torna sua sobrevivência um grande desafio. Os alienígenas decidem, então, enviar uma frota estelar para invadir a Terra e colonizá-la. Mais tarde, esses alienígenas serão chamados, na série, de San-Ti.
Em um salto temporal para os dias atuais, um grande mistério envolve uma série de suicídios de vários cientistas. Durante a investigação se descobre que os suicídios estão conectados a uma espécie de jogo de realidade virtual, em que o jogador usa um tipo de capacete, que também está, de alguma forma ligado aos eventos extraterrestres iniciados na China anos antes.
A história segue paralelamente duas épocas distintas, variando entre os episódios e mostrando a história completa e as origens de toda a situação. Dessa forma, vemos inicialmente a jovem Ye Wenjie na China dos anos 60, para depois irmos para a Inglaterra nos dias atuais onde o detetive Shi Qiang, também chamado de Clarence Shi pelo seu chefe da Agência de Inteligência Estratégica, Thomas Wade, assume a investigação de casos misteriosos, que acaba o levando a um grupo de cientistas e colegas de classe conhecido como Oxford Five.
Entre eles estão Jin Cheng (Jess Hong), um físico teórico curioso; Auggie Salazar (Eiza González), uma pesquisadora prestes a revolucionar o mundo com sua nova nanotecnologia; Jack Rooney (Bradley), chefe de um império de salgadinhos; Saul Durand (Jovan Adepo), um assistente de pesquisa talentoso, mas sem foco; e Will Downing (Alex Sharp), professor de física do ensino médio. Juntos, eles descobrem uma ameaça alienígena iminente à Terra.
O Problema dos Três Corpos apresenta dois mistérios intrigantes que estão relacionados um ao outro. O primeiro é a série de suicídios inexplicáveis cometidos por cientistas e investigado por Shi Qiang. O segundo problema é que a ciência parece ter parado de funcionar ou ter dado uma guinada para algo inexplicável. Os pesquisadores estão relatando resultados de experimentos em aceleradores de partículas que não fazem qualquer sentido. Os resultados desmentem todas as nossas teorias aceitas pela física. Um dos cientistas que fazem parte do grupo de amigos, Saul Durand, observa que “a ciência está quebrada”. Tudo envolve uma ameaça iminente à Terra.
SOBRE A SÉRIE
A série da Netflix possui uma trama imersível, muito mais pelas questões científicas, aparentemente novas, e menos pela profundidade de personagens.
Há três aspectos que podem ser apresentados como parte da ciência introduzida na ficção: o problema dos três corpos em escala planetária, o jogo de realidade virtual apresentado pelos alienígenas e o supercomputador quântico criado pelos San-Ti a partir de um próton, chamado de Sófon.
Por um lado, temos um problema científico ainda insolúvel, que é a previsão dos movimentos que envolvem três corpos que atuam entre si por meio de forças gravitacionais. As implicações que surgem em um planeta que pertence a um sistema com dois ou três sóis é apresentada tanto no livro de Cixin Liu quanto na série da Netflix.
Por meio de um jogo virtual, um dos San-Ti, como são chamados os alienígenas, mostra a queda e o extermínio de civilizações devido à imprevisibilidade da situação orbital do planeta que habitam, mas também como outra ressurge sem perder a memória do passado e tendo condições de retomar o seu desenvolvimento e evolução. Nesse sentido, havendo um sobrevivente entre os San-Ti, todos sobreviverão.
Outro aspecto é o conceito de um supercomputador, chamado de Sofon. Sua construção é baseada em um núcleo de um próton e tem a capacidade de realizar muitas tarefas. Uma delas é permitir comunicações quase em tempo real, mesmo havendo a distância de quatro anos-luz do planeta dos San-Ti ou da frota que se encaminha para a Terra.
A ameaça que a Terra irá enfrentar está a séculos de distância, mas para a humanidade, o planejamento para o futuro começa agora. Cada membro dos Oxford Five terá um papel muito diferente a desempenhar na próxima batalha da humanidade pela sobrevivência, no entanto ao buscar histórias paralelas de cada personagem para dar mais vida e complexidade à trama, nem tudo foi um acerto.
A personagem Auggie, por exemplo, ficava no meio do caminho entre ficar atormentada por suas visões de uma contagem regressiva, que só pode ver, e suas crises sobre o que estava acontecendo e as suas próprias crises existenciais. Também parecia um pouco deslocada em seu grupo que buscava desvendar o que estava acontecendo e a causa de tudo.
Os momentos que envolvem Jin e Jack com o capacete de um jogo virtual são os mais interessantes, pois é assim que a série começa a fazer sentido de qual é o verdadeiro problema que todos estão enfrentando. Ainda assim, não parece ter havido muita química entre os atores, mesmo que tenha sido um dos pontos mais altos da série. Principalmente, pelo fato de ambos precisarem resolver os problemas apresentados pelos alienígenas e sempre surgirem personagens históricos importantes, como Isaac Newton. Há certo alívio cômico nesses momentos.
Enquanto isso, o par restante dos Oxford Five tem um desempenho que não empolga. Will recebe um diagnóstico médico que muda toda a sua vida, mas ele passa a maior parte da série ansiando pela atenção de Jin, algo que se move por um caminho de um drama que parece destoar de toda a história. Seria algo a ser desenvolvido em outro filme ou série, mas nessa não combinou muito bem. A forma como o problema de Will é resolvido beira o dramalhão e termina pior para todos. Por sua vez, os envolvimentos românticos não resolvidos do passado de Saul com Auggie também parecem mal passados, já que ele também é frustrantemente marginalizado até o último minuto. Pode-se dizer que essa série não está equipada para dramas de relacionamento.
As interações entre qualquer um dos Oxford Five e o detetive Shi Qiang são interessantes em todos os aspectos, pois trazem certo humor, ironia ou pavor existencial que dá uma sacudida na série. O mesmo se pode dizer de Thomas Wade, o chefe de Clarence. Apesar de buscar uma postura de um Lord, em algumas vezes ele traz um tom que modula entre ironia e a frieza de um chefe que está à frente de uma investigação e um projeto importante para combater os alienígenas. Os confrontos entre ele e Auggie não são muito convincentes.
Para a maior parte de O Problema dos Três Corpos oferece alguns cenários de ficção científica verdadeiramente excelentes. Qualquer cena ambientada no videogame cria a oportunidade para um espetáculo em grande escala, desde um exército de milhões de pessoas até um congelamento cataclísmico. O espectador fica envolvido com um terror convincente à medida que as civilizações dentro do jogo se desidratam em cadáveres dissecados para sobreviver a eras caóticas e depois voltar à vida apenas adicionando água.
Os efeitos especiais principalmente os produzidos nas cenas dos jogos em que os jogadores precisam resolver o problema causado pelos três corpos são ótimos. A forma como os personagens históricos participam dos problemas que os jogadores precisam resolver e salvar, assim, as civilizações de cada época, também foram muito bem construídas.
De modo geral, a série foi muito bem produzida e dirigida. O roteiro buscou o maior número de elementos da obra de Cixin Liu, mesmo que tenha se desviado consideravelmente em relação ao material original. O final deixou uma forte expectativa para a segunda temporada, pois a Terra faz os preparativos para a chegada dos San-Ti, como foram chamados os alienígenas.
Os invasores chegarão daqui a quatrocentos anos e enquanto isso, todos os humanos estarão sendo vigiados e monitorados para evitar o desenvolvimento tecnológico, algo que impedirá uma invasão bem sucedida. Ainda assim, resta à humanidade alguma chance, apesar de, no final, tudo levar a crer que não há mais tempo para uma reação.
A SÉRIE CHINESA E DA NETFLIX
Desde 2008, a Tencent, um dos maiores aglomerados de mídia chineses, obteve os direitos de adaptação da obra. No início deveria ser um filme, porém, pela complexidade da obra, decidiu-se por uma série. A produção começou em 2020, tendo Lei Yang como diretor.
A série chinesa começa sua história nos anos de 1960, quando a astrofísica Ye Wenjie recebe uma mensagem decodificada de algum ponto do espaço profundo, vinda de uma forma de vida alienígena, e envia uma resposta para que venham salvar a Terra e resolver os seus problemas. Sua decisão tem consequências devastadoras para toda a humanidade dali a quarenta anos, quando Wang Miao, um dos maiores especialistas em nanomateriais da China, é recrutado pelo detetive Shi Qiang para uma missão.
A estreia da série chinesa ocorreu em janeiro de 2023 no canal CCTV, tendo a primeira temporada 30 episódios, que variam entre 40 e 50 minutos, e esmiuçando ao máximo a história do livro. O público elogiou muito a produção pela fidelidade ao material original e a forma como os aspectos culturais da história foram mantidos.
Enquanto a produção chinesa optou por manter toda a ambientação na China, com atores chineses assim como todo desenvolvimento da trama, a Netflix optou por uma produção mais global. De acordo com os produtores, a trama gira em torno de um problema que irá afetar todo o planeta e não apenas a China.
Em setembro de 2020, a Netflix anunciou que David Benioff e D. B. Weiss estavam desenvolvendo uma adaptação televisiva do romance na Netflix, com Alexander Woo co-escrevendo ao lado deles. A produção da série começou em 8 de novembro de 2021, sendo filmada no Reino Unido e na China. A estreia foi em 21 de março de 2024, tendo oito episódios de quase uma hora cada um.
A série chinesa já está disponível para streaming gratuito no Brasil, sob o nome “Três Corpos” pela plataforma Rakuten Viki, que disponibilizou todos os 30 episódios em seu catálogo, com opção de legendas em português.
Você pode assistir a série chinesa clicando AQUI.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.