Gaal Dornick: as faces de uma personagem em Foundation.
Entre o conto publicado na revista Astounding, de 1942, e o romance de 1951, houve uma diferença que está transformando a série Foundation, da Apple. Trata-se de Gaal Dornick.
Paulo Bocca Nunes
A primeira temporada de Foundation, na plataforma da Apple, foi um sucesso. Excelente produção, bons efeitos especiais. A trama é a mesma do romance. Houve debates em torno dos personagens, pois alguns foram totalmente diferentes da obra original de Asimov.
Um dos maiores destaques da primeira temporada da série foi Gaal Dornick, uma jovem com grande talento para a matemática e foi convidada por Hari Seldon a fazer parte de sua equipe na Universidade de Trantor, o planeta central do Império Galáctico. Essa personagem surgiu no romance de 1951, entretanto, não esteve presente no conto inicial publicado em Astounding Science Fiction, de 1942.
Nessa publicação, tudo inicia com uma reunião entre os enciclopedistas comandados por Hari Seldon. Em um discurso de despedida, ele comenta as dificuldades e os percalços para dar início à Enciclopédia Galáctica, que será o suporte para formar a nova civilização do Segundo Império.
Nesse discurso, Seldon anuncia duas coisas: o Império Galáctico estava caindo e o estabelecimento de dois refúgios científicos: um em Terminus e o outro no que ele chamou de Ponte das Estrelas, sem definir exatamente onde seria.
Seldom ainda indicou acontecimentos futuros, baseados na psico história. Em cinquenta anos haveria revoltas de Anacreon e Loris, na extremidade da galáxia, o que levaria ao movimento final do término do Império.
O romance seguiu um caminho mais trabalhado por Asimov. Inicialmente, o livro começa com a chegada de Gaal Dornick a Trantor, o centro do Império Galáctico. O narrador faz toda a apresentação do personagem, um provinciano de Synax, um planeta que “circulava em torno de uma estrela nos confins do Deserto Azul”. Ao escrever com letras maiúsculas, certamente se pretendia localizar uma região específica da Galáxia.
A viagem de Dornick foi descrita com todas as características claras da hard sci fi de Asimov. Uma viagem acima da velocidade da luz, de um extremo a outro da galáxia, poderia levar anos. No entanto, uma viagem no “Superespaço”, onde não era espaço, nem tempo, matéria ou energia, poderia atravessar a galáxia em poucos segundos.
Ao chegar a Trantor, Dornick ficou surpreso com a vista da cidade em que desembarcou da nave. No romance não há referência à Ponte, que fica acima da atmosfera, onde as naves chegam de diversos pontos da Galáxia e desembarcam os milhares de passageiros até o solo de Trantor. Essa ponte, a partir de uma primeira observação, pode dar a entender que é o Stars End citado por Hari Seldom.
O primeiro passeio de Dornick por Trantor teve um resultado bastante inusitado, pois conheceu um homem chamado Jerril. Ao saber que Dornick veio a Trantor para trabalhar em um projeto de Hari Seldom, Jerril se refere ao velho matemático de Corvo Seldon, o que causou não apenas estranhamento em Dornick como também algum descontentamento.
Ao chegar em seu quarto de hotel, Dornick encontra Seldom o esperando. Seldom explica que Jerril é membro da Comissão de Segurança Pública. Seldom tira do seu bolso uma calculadora, que projeta os seus símbolos matemáticos formando equações. Depois de algumas perguntas do velho matemático, Dornick chega a conclusão que Trantor e o Império irão se esfacelar em cinco séculos. Em algumas partes do texto há excertos que são citações de artigos que fazem parte da Enciclopédia Galáctica. Em uma delas, há uma importante referência a Gall Dornick:
…Gall Dornick empregando conceitos não-matemáticos, relacionou e definiu a psicohistória com o ramo da matemática em relação às reações de grandes aglomerados humanos a estímulos econômicos e sociais.
Essa passagem do texto dá indícios de servir como base para a personagem da série de TV. Desde o primeiro encontro com Seldom, tanto no livro quanto na série de TV, Dornick observa as equações da calculadora de Seldom e afirma haver algo incompleto. Na adaptação televisiva, em vários momentos, quando está sozinha, Dornick faz cálculos de cabeça, mas não se sabe o que ela calcula.
No momento em que a nave está fazendo a viagem até Terminus, e ela está na piscina sozinha e fazendo os seus cálculos de cabeça, ela tem um sobressalto e sai apressada. Ela se dirige ao camarote de Hari Seldon e mostra preocupação. Ao chegar na porta do camarote e ela entra, presencia uma cena que a deixa chocada.
A partir daí, a história toma um rumo totalmente inesperado e se afasta ainda mais do livro de Asimov. Importante lembrar que o personagem Dornick não existe no texto de 1942 da Astounding. O personagem só vai aparecer no romance de 1951 e apenas no primeiro capítulo que traz o título de Os Psicohistoriadores.
Na revista, uma das conclusões de Salvor Hardin, que tornou-se prefeito de Terminus, foi o fato de não haver psicohistoriadores entre os enciclopedistas. A sua explicação foi que Seldon tomou essa decisão para evitar que os psicohistoriadores pudessem fazer seus cálculos e, a partir disso, prever alguma coisa em um momento de conflito ou alguma crise que a Fundação estivesse passando. A solução deveria vir das pessoas da Fundação sem a interferência da psicohistória. Seria assim, com o uso da diplomacia e do conhecimento que todas as crises deveriam ser vencidas.
Entretanto, no romance há uma dúvida que pode ser uma incoerência. Entre o primeiro capítulo e o segundo (Os enciclopedistas), tanto na revista quanto no romance, se passaram cinquenta anos. Não se fala em Gaal Dornick a partir disso, a não ser a referência na Enciclopédia Galactica. Além disso, o que as pessoas da Fundação sabem sobre Hari Seldom é exclusivamente a partir dos textos de Dornick, como uma biografia.
Na obra de Asimov, Seldon morreu dois anos depois da partida dos enciclopedistas para Terminus. No final do primeiro capítulo, do romance, Seldom diz a Dornick:
Haverá sucessores – talvez o senhor, Dr. Dornick. Esses sucessores estarão habilitados a aplicar o toque final no esquema dos acontecimentos. Anacreon será instigado à revolta no momento propício. Após isso, os acontecimentos suceder-se-ão por si mesmos.
Anunciando Dornick como um possível sucessor e tendo ficado alguns em Trantor, além do anúncio de haver uma possível segunda Fundação, isso significa dizer que Dornick permaneceu em Trantor com atribuições importantes. Não se encontram outras aparições ou referências importantes de Dornick nos romances subsequentes: Fundação e Império e Segunda Fundação.
No romance de 1951, Dornick surge, portanto, com a possibilidade de muita importância. Um dos fatores para isso é a escolha a dedo feita por Seldom, justamente em um momento crucial em que ele está sendo vigiado e prestes a ser preso e julgado por traição ao Império. Depois, pela fala de Seldon, Dornick será importante para a Fundação, sendo um dos seus prováveis sucessores. Esse destaque segue no capítulo seguinte anunciando Dornick como o biógrafo de Seldon. Porém, essa importância para o conjunto da obra se desfez totalmente.
A série, ao contrário, parece buscar um restabelecimento dessa importância do personagem. Primeiramente, mostrando o aspecto observador desde o primeiro encontro com Seldon. Depois em levar o personagem para Terminus, juntamente com Seldon. O outro aspecto é no momento da piscina em que ela sai correndo em direção ao camarote de Seldon. Depois ela é colocada em uma nave criogênica e lançada ao espaço até encontrar outra nave em que ela tem contato com uma espécie de projeção da mentalidade de Seldon. Finalmente, quando ela abandona essa nave, embarca novamente na nave criogênica e toma o rumo de Synax, o seu planeta natal. Ao chegar lá, ela encontra uma pessoa que, pelos acontecimentos até então, fará mudar radicalmente todo o rumo da série.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.