Mar da Tranquilidade: a série de ficção científica sul-coreana convence?
A Netflix segue apoiando as produções sul-coreanas. Dessa vez, uma série de ficção científica veio com a expectativa de seguir o mesmo sucesso de Round 6. Baseda em um curta-metragem de 2014, a série mostra uma sociedade distópica de um futuro próximo. Mesmo que não se compare a outras produções de orçamento muito mais elevado (entenda-se norte-americanas), Mar daTranquilidade consegue convencer o expectador?
Por Paulo Bocca Nunes
Filmes distópicos de um futuro próximo ou distante são constantes nas produções de ficção científica. Vista como um gênero especulativo, cada produção trata do ponto de vista de cada realizador. Muitas vezes, o tema ou o assunto central se repete e, invariavelmente, parece estarmos assistindo a um mesmo filme só que com atores diferentes.
No caso de ”Mar da Tranquilidade”, essa é a impressão inicial, mas vai se mostrando um pouco diferente de outras produções, mesmo que não seja original. Contando com um elenco qualificado, os coreanos decidiram embarcar de vez em uma produção dominada por norte-americanos e seus orçamentos fabulosos. Ainda no ano de 2021, por exemplo, tivemos Nova Ordem espacial que marcou forte presença na plataforma da Netflix. Um ponto curioso para essa nova produção é como ela surgiu.
A série é baseada em um curta-metragem de 2014 e de mesmo nome de Choi Hang-Yong, que mostra um futuro onde a Terra está prestes a se tornar um imenso deserto pela quase total falta de água. Nesse cenário distópico e muito realista, a população mundial luta pela vida, sofre as consequências desse problema e o governo tenta amenizar a crise hídrica dividindo a população em classes. Significa dizer que quanto mais importante for o trabalho da pessoa, mais água ela recebe.
O produtor Jung Woo-sung, produtor executivo, disse que ao ver o curta, considerou-o como um pequeno diamante bruto e sua história poderia desconcertar os espectadores. Os atores do elenco também assistiram ao curta e todos ficaram impressionados, algo que foi determinante para aceitarem a participação na série.
A roteirista, Park Eun-kyo, leu o roteiro do curta-metragem e se perguntou sobre quando a sobrevivência da humanidade está ameaçada, que riscos podemos correr para garantir nossa sobrevivência, que padrão devemos seguir quando tomamos uma decisão ou que tipo de sobrevivência nos deixa ainda humanos. Essas foram questões norteadoras para a criação final do roteiro.
O vídeo sobre os bastidores do filme pode ser assistido em https://www.youtube.com/watch?v=ixpLsNln6uI&t=36s
A SÉRIE
Tomando carona em outras produções sul-coreana, O Mar da Tranquilidade também traz uma crítica contundente relacionada ao abismo entre classes e os privilégios dados a privilegiados que reforçam essa desigualdade social. O tema se mostra bastante atual e sem dar a sensação de uma solução a médio ou curto prazo. Ao mostrar esse cenário em uma obra de ficção científica, numa sociedade distópica em um futuro não muito distante, pode-se perceber que não há muito otimismo de solução.
A abertura dos episódios mostra o ponto central do que irá tratar toda a série. Sequências de água cristalina e em movimento ao som de uma trilha musical envolvente, sem o clima épico de outras produções de ficção científica. Em 2075, a Terra tem graves problemas de abastecimento de água. Os oceanos secaram, os peixes foram extintos, a água potável é uma mercadoria rara e distribuída em pontos que funcionam como caixas eletrônicos em que cada pessoa se abastece usando um cartão com chip. Cada pessoa pode retirar uma quantidade específica de água de acordo com a sua função ou seu cargo.
Agências, Comitês e Centros de Pesquisa são criados para encontrarem soluções relacionadas à falta de água. Uma dessas instituições, a SAA (sigla em inglês para Divisão de Espaço e Aeronáutica da Coreia do Sul), liderada pela diretora Choi, criou uma base na Lua, chamada Balhae, pois foi encontrada água no satélite.
Porém, a base foi desativada depois que se noticiou que um vazamento radioativo matou todos os ocupantes. Uma equipe composta por engenheiros, uma etnóloga, uma médica e astronautas, totalizando onze pessoas, foi designada pela agência para trazer uma amostra das pesquisas que estavam sendo desenvolvidas na base.
Pouco antes de chegarem à Lua, a nave tem um defeito mecânico e faz um pouso forçado. O resultado é catastrófico e a nave se perde. O grupo vai caminhando até a base Balhae. Ao chegarem se deparam com um cenário impressionante de pessoas mortas espalhadas pelos corredores. A médica constatou, no entanto, que a causa das mortes parecia bastante diferente do que foi informado pela agência. Também constaram baixos níveis de radiação em toda a base. A partir daí há um conflito entre a astrobióloga, Song Jian, e o capitão Han Yun-jae, comandante da expedição. Ela quer investigar o que houve enquanto o capitão quer apenas cumprir a missão e retornar à Terra.
São formados três grupos de busca para encontrar um recipiente que contém a amostra e cada um cuida de uma parte da imensa instalação da base. À medida que os grupos vão fazendo o reconhecimento do lugar, mais coisas vão surgindo e o mistério vai aumentando sobre o que aconteceu. Depósitos desconhecidos ou que não estão na planta da base vão sendo descobertos.
O grupo acaba descobrindo que a pesquisa tem a ver com a água descoberta na Lua, mas ela apresenta problemas para o consumo humano e causa efeitos irreversíveis e perigosos. O mistério aumenta quando é descoberto uma criatura que está disposta a cuidar de seu território que é o interior da base.
Em cada episódio, o espectador é colocado frente a frente com situações dos principais personagens, no caso a doutora Song e o capitão Han, na forma de flashbacks. Dessa forma, são construídos os personagens e vamos entendendo os conflitos de cada um e quais os seus objetivos ao aceitarem a missão. A trama não se passa apenas na Lua, mas também na base da SAA, com a doutora Choi mostrando que sabia mais do que disse saber e movendo as peças para um jogo ainda sem definição de quantos jogadores participam.
A série é de ficção científica, mas guarda fortes elementos de mistério, suspense e também terror. Esse último se solidifica quando o grupo descobre como eram feitas as experiências para verificar as condições de consumo da água pelos humanos. A situação começa a ficar clara quando a doutora Song descobre que a fonte para descobrir todo o mistério está em algo que foi chamado de Luna pela sua irmã, uma cientista que estava na base, que morreu junto com toda a tripulação, mas deixou mensagens para Song.
OPINIÃO
A série chegou com grande expectativa. A trama é boa, com reviravoltas interessantes e até surpreendentes. O tema central não é nem um pouco novo assim como falar de diferenças sociais e exploração econômica. O elenco é muito bom. A fotografia é razoável assim como os efeitos especiais que não são dos melhores. Para mostrar o panorama de uma Terra seca e quase devastada, com um clima inóspito, a produção usou e abusou de uma fotografia repleta de tons quentes. As tomadas panorâmicas de câmera deram uma ideia muito realista da situação. Quanto aos efeitos especiais usados para representar os acontecimentos na Lua e na base Balhae, o que se pode dizer é que a ambientação foi razoável o suficiente para levar toda a trama até o final.
Toda a série peca em algumas sequências, algumas coisas mal “explicadas”, algumas confusões. Alguns “probleminhas” de coerências científicas. Mesmo assim, a série prende a atenção por causa da trama e do clima de mistério e suspense, quase que de conspiração. Há muitas reviravoltas e a cada cena algo novo surge e desperta a curiosidade sobre para onde tudo está indo.
Mar de Tranquilidade leva o espectador a perceber que escrúpulos não fazem parte da condição humana, mesmo quando a sobrevivência de toda a humanidade está em jogo. A busca por fontes de água para suprir as necessidades mundiais passa a ser também uma corrida pelo poder político e econômico. A missão da SAA em resgatar um frasco de amostra de pesquisas da base Balhae quase foi um desastre por causa da corrida que outras empresas rivais estavam empreendendo para tomar posse também da mesma amostra.
Por outro lado, a descoberta de registros que mostravam como as experiências eram feitas, causou não apenas espanto, mas indignação e revolta em toda a tripulação da nave de resgate comandada por Han. Houve divisão no grupo em denunciar as pesquisas ou silenciar. No primeiro caso, isso poderia ser considerado traição. Por outro lado, caso ficasse tudo encoberto, as consequências em um tribunal internacional poderia ter piores resultados.
Essas questões todas foram muito bem construídas pela roteirista Park Eun-kyo. Não houve pressa para entregar a verdade sobre tudo o que se passava na base Balhae, bem como todo o jogo de intrigas e traições que iam se desenrolando ao longo de cada episódio.
O final deixa uma brecha para uma segunda temporada, mas eu creio que tudo irá depender de como essa primeira será recebida pelo público. Não creio que haverá o mesmo sucesso de outras produções sul-coreanas. Penso que em Round 6, por exemplo, há mais curiosidade sobre o que irá acontecer numa segunda temporada e podem ser criadas mais “teorias” sobre isso. O fio que poderá se conectar a uma segunda temporada não parece ser suficientemente forte para isso.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.