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O Pálido Olho Azul não soube que história contar

Em janeiro de 2023 a Netflix trouxe para a sua plataforma um filme que tinha tudo para ser um concorrente ao Oscar. Mas, não se sabe que história está querendo nos contar.

Paulo Bocca Nunes

Baseado no romance homônimo de Louis Bayard, O Pálido Olho Azul chegou na Netflix em 6 de janeiro de 2023 depois de uma rápida passagem pelos cinemas. A história se passa no ano de 1830 e segue a trajetória do detetive aposentado Augustus Landor, interpretado por Christian Bale. Certo dia, ele recebe a visita em sua casa de um dos oficiais da Academia Militar Wets Point, Nova York, para descobrir o assassino de um cadete, Leroy Fry, encontrado enforcado em uma árvore.

Para solucionar o mistério, Augustus conta com o auxílio de um membro da instituição. Trata-se de um jovem cadete melancólico, não muito sociável com seus colegas, com inspirações poéticas e excepcionalmente inteligente, chamado Edgar Allan Poe (Harry Melling), com quem o Augustus forma uma parceria bastante improvável na investigação.

À medida que a dupla improvável começa a desvendar o mistério, eles vão descobrindo que há muito mais em jogo do que aparenta, pois outras mortes vão acontecendo de forma misteriosa. Isso aumenta ainda mais os oficiais que dirigem a Academia, pois eles terão que prestar informações ao Presidente.

Pelas observações da forma como Fry foi assassinado e por ter tido o seu coração retirado de seu corpo, as coisas começam a apontar na direção do ocultismo.Essa linha de investigação os leva até a porta de Artemus Marquis, cujo pai é o cirurgião residente de West Point, Dr. Daniel Marquis, e cuja irmã, Lea, chamou a atenção de Poe, deixando o jovem cadete e futuro escritor apaixonado. Lea tem uma misteriosa doença que faz com que seu pai e sua mãe Julia (Gillian Anderson) se preocupem com ela constantemente.

A solução da história não é a solução do mistério, pois no final, quando se pensa que tudo está resolvido há uma reviravolta que coloca os personagens principais numa encruzilhada de traição e decepção. Tudo aquilo que se acreditava ter sido não passava de mentiras e de um jogo em que um usava o outro para esconder o seu maior segredo.

SOBRE O FILME

A história se passa no inverno, o que contribui para a atmosfera melancólica e gótica, bem adequada a um dos personagens conhecido por sua obra de terror, mistério e de um clima bastante sombrio. A história não é uma biografia de Edgar Allan Poe, mas é verdadeiro o fato de ele ter servido na mesma academia, tendo entrado em 1830, mesmo ano em que se passa tanto a história do filme. 

Embora tivesse bastante aptidão para os estudos teóricos, ele não se enquadrava às obrigações, às rotinas e à rigidez da vida militar. Então, passou a faltar às aulas, às missas e deixar de executar tarefas. Isso o levou a ser dispensado em 1831.

Harry Melling mostrou um Allan Poe na sua juventude, algo que ainda não havia sido feito no cinema. Sua atuação deu vida a um autor que pelo conjunto de sua obra já é um personagem. Muitas vezes os seus contos sombrios, de terror, de crimes macabros e criaturas do oculto parecem trazer a sua face numa moldura de fundo, tamanha é a relação de identidade entre autor e obra.

Algumas cenas trazem algum easter egg que remetem ao escritor. Em uma delas, um corvo que passa pela frente da câmera. Ele é mostrado frequentemente em um bar e ao beber com amigos, mostra que consegue beber a noite toda. Isso também é uma referência a um dos mistérios da morte do escritor. É uma ideia comum dizer que o alcoolismo foi o grande causador de sua morte em 7 de outubro de 1849.

O personagem de Melling quase ofusca totalmente o de Bale, que deveria ser o protagonista desse thriller. O ator consegue dar um olhar frio, pálido e de um ser convertido em profunda introspecção, quase de alguém que abandona a realidade à sua volta buscando as respostas e os significados de coisas mínimas para atender coisas maiores. Foi assim que, baseado na sua grande inteligência e abstração, ele conseguiu decifrar um fragmento de bilhete que Augustus encontrou na mão de Fry. Essa mesma introspecção do personagem faz com ele descubra a verdade por trás de todo o mistério dos assassinatos. Depois de sofrer as chacotas de seus colegas de Academia e ter acreditado que havia encontrado um amigo, a sua grande decepção foi perceber que nunca fora outra coisa do que uma peça a ser usada em um jogo. 

Bale, por sua vez, não mostrou a sua melhor interpretação, mas soube conduzir muito bem o seu personagem. Porém, o roteiro facilitou o trabalho do detetive. Para um filme de pouco mais de duas horas, as pistas estavam sendo muito fáceis de serem seguidas para levar aos suspeitos certos. As cenas em que ele fazia as suas reflexões e se revezavam com outras situações envolvidas na trama. O começo do filme deu a entender que Bale seria o grande protagonista, um detetive fechado emocionalmente por suas duas perdas, a mulher e a sua filha. Só que à medida que a história seguia o seu rumo, o personagem de Melling foi ganhando destaque a tal ponto de haver uma dúvida sobre quem conduzia a narrativa.

A abertura do filme mostra um trecho de um texto de Allan Poe que fala sobre os limites da vida e da morte. Em seguida, a tela abre e mostra uma cena com toda a atmosfera da obra de Poe. Depois a câmera busca o detetive Augustus em uma cena que, pode parecer bastante banal, mas terá uma explicação chocante no final. Ao longo do filme vamos percebendo que há uma dor muito forte de Augustus pela perda da filha. Isso é mostrado em forma de flashback ou alucinações. Esses detalhes mostram uma alma dolorida, porém elas vão revelar outro lado do personagem que fica escondido até o final. 

Os outros personagens parecem estar ali só para formar o recheio da trama, havendo uma desconexão com os protagonistas. Não formam núcleos dramáticos suficientes para garantir o suspense que o filme prometia e não entregou. Houve mais momentos de introspecção de dois personagens do que o desenvolvimento de uma história de mistério, de suspense e de certo horror. 

A cena do porão em que Lea busca executar um plano macabro termina de forma quase banal e pouco crível, para dizer o mínimo. A própria personagem Lea não convence com sua frieza e sofrimento por uma doença misteriosa. Destoa muito quando divide a cena com Allan Poe. 

A cenografia e a fotografia compõem uma simbiose perfeita, variando os momentos de luz e de sombras para dar a melhor atmosfera para um filme digno de ter uma personagem como Allan Poe. Além disso, a maquiagem nos momentos em que é analisado o corpo de Fry, se não é de arrepiar, pois muitos filmes de terror mostram muito mais, foi na medida certa para manter o foco no mistério. 

A direção de Scott Cooper deixou alguns deslizes, mas conseguiu levar a história bem amarrada e bem conduzida até o final. Usou de alguns chavões de filmes desse gênero, como acompanhar uma pessoa por um caminho à noite, sabendo que há um criminoso à solta e terminando da forma que o espectador já espera. Saber lidar com cenas sombrias, sem serem escuras, haver neblina para compor um mistério no ar não é fácil e pode ser uma tentação para o exagero. Esse não foi o caso de O Pálido Olho Azul.

A maior perda de rumo foi o fato de Scott Cooper, que também assina o roteiro, não se contentar apenas com o jogo de detetive de pistas e suspeitos em quantidade. O roteiro ainda procura encaixar aquelas referências que remetem ao sobrenatural trazidas do universo do próprio Allan Poe. Também fica desconectado dos dramas de outros personagens, como o de Augustus e de Allan Poe. Percebeu-se coisas diferentes que foram colocadas em um caldeirão apenas para estarem ali e levarem uma história adiante.

Apesar de muitos pontos positivos, o filme promete um thriller que não entrega de todo. Não se pode dizer também que é um forte concorrente ao Oscar. Isso se torna bastante descabido. Porém, o filme está longe de ser ruim.

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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.