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O Páramo: filme de terror ou drama psicológico?

Uma produção espanhola transita entre o gênero de terror e o drama psicológico, ambienta sua história no século XIX. Uma criatura misteriosa, que faz parte de uma lenda, se alimenta do medo das pessoas e persegue uma família. O medo que se espalha pela casa deixa a criatura cada mais forte.

Por Paulo Bocca Nunes

As produções espanholas têm se destacado nas plataformas, especialmente na Netflix. De um modo geral, elas fogem do modelo de Hollywood em que os filmes chamados de suspense e ação têm muita correria e mudanças bruscas de rumo nas histórias. Em O Páramo não é diferente.

O filme começa dando algumas informações muito básicas. No século XIX, em meio às guerras que assolam o país, uma família, composta por um casal e um garoto, se retira para o interior para buscar uma vida mais tranquila. Apesar de tudo, a vida é difícil e a relação do casal não parece ser das melhores, principalmente pelo fato de haver diferença entre a forma que cada um quer educar o pequeno Diego.

As mudanças vão ocorrendo depois que Salvador vai embora, alegando que irá levar o corpo de um homem que surgiu na propriedade e morreu, aos seus familiares. Com o passar do tempo e a espera, Lúcia dá mostras de estar ficando perturbada mentalmente e ela afirma que uma criatura ou alguém está se aproximando da casa.

O filme não especifica quando ocorre, mas o que se pode dizer é que, entre 1823 e 1833 houve um conflito na Espanha que ficou conhecido como a Década Sinistra. Como todos eles falam em uma guerra que está acontecendo, podemos entender que a história se desenrole em algum tempo dentro desse período.

O lugar não é especificado, no entanto o título indica o tipo de lugar. Páramo se refere a uma ampla planície com vegetação rasteira. No filme, esse cenário, com um horizonte imenso e distante, é muito usado para amplificar toda a solidão que a família vive.

O Páramo tem roteiro de David Casademunt, Martí Lucas e Fran Menchón. Casademunt fez a sua estreia na direção. O elenco tem Inma Cuesta (Lucia), Asier Flores (Diego) e Roberto Álamo (Salvador).

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O FILME

Pode parecer uma necessidade criticar um filme, apontando os seus defeitos. Algumas vezes, esses “defeitos” que o crítico encontra se constituem em argumentos para dizer que “o filme não é bom”, “é uma perda de tempo”, “o filme se perdeu na direção”, “o roteiro é rim”, “o elenco é fraco”, “as atuações foram precárias”, “a fotografia…”, “ a iluminação…”, “os efeitos especiais…” e por aí vai afora. Tudo isso quase chega a ser um chavão de críticos de cinema.

No entanto, O Páramo, no meu entender, não pode pertencer ao tipo de filmes que recebem essas críticas de forma fria. Há problemas, com certeza, mas, de um modo geral, podemos dizer que se trata de um ótimo filme.

Começando pelo roteiro, esse mostra alguns problemas. Há diferença entre um roteiro aberto e um roteiro que deixa as ideias ou coisas subentendidas. Não há necessidade de “desenhar” tudo o que acontece em um filme, mas pelas ações dos personagens entendemos os seus objetivos, decisões e ações. O filme deixa uma pequena dúvida: é um filme de terror ou um drama psicológico? Provavelmente seja as duas coisas e isso, no meu entender, não prejudica o filme.

A direção de Casademunt, se não foi brilhante, pelo menos foi eficiente em quase todo o filme. Algo bastante positivo para alguém que estava no seu primeiro trabalho como diretor. Não há direção sem roteiro e cabe ao diretor trabalhar em sintonia com o roteirista caso haja algum problema de inconsistência, incoerência ou até mesmo inverossimilhança no roteiro. Nesse filme, o roteiro não é um problema grave, mas há superficialidades que deixam o espectador na obrigação de fazer suposições ou subentender algumas coisas.

Não se sabe nada sobre Salvador e Lúcia. Nada de onde vieram, por que e como foram parar naquele lugar tão isolado. Só se sabe que estão ali por causa de uma guerra. Salvador é um homem avançado em idade, um homem fechado, de tratos um tanto brutos e com um olhar muitas vezes sombrio. Porém, ele demonstra amor pela sua família. Está sempre preocupado em verificar o horizonte como se estivesse vigiando ou cuidando alguma aproximação indesejada. Os limites da propriedade estão demarcados por troncos com espantalhos, como se fossem servir para afugentar o que não é bem-vindo.

Lucia é uma mulher que aparenta ser muito mais jovem. Sempre disposta a ajudar nas tarefas da casa e da propriedade. O que causa o conflito entre o casal é a forma como ela busca dar uma educação mais humana ao filho Diego, uma ludicidade que a infância necessita. Ela se constitui em uma mãe protetora que busca evitar sofrimento e traumas ao filho e diz ao marido que Diego irá ser homem no tempo certo.

Diego, ainda uma criança, tem que enfrentar o pai que deseja fazer dele um homem para enfrentar o mundo. Ele é muito mais acercado de sua mãe que lhe dá atenção, carinho, mas acima de tudo lhe dá proteção.

Qualquer coisa referente ao passado dos dois não é apresentada no filme, a não ser uma história que envolve a irmã de Salvador. Os comportamentos de cada um do casal bem como eles se relacionam e a forma como cada um interage com os elementos da casa e a propriedade deixam muitas coisas subentendidas ou podem levar o espectador a pressupor coisas. Isso não é o mesmo que levar o espectador e tirar conclusões.

Em vários momentos do filme, Salvador ficava observando o horizonte como se estivesse vigiando ou esperando por algo ou alguma coisa. as tomadas de imagem sempre são de longe, mas é possível perceber que a forma como Salvador olha para o horizonte traz um olhar de vazio, assim como todo o lugar se mostra um grande deserto.

Quando Salvador encontra um barco descendo o rio com um homem muito ferido, começa uma mudança no personagem. O homem acaba se matando depois de apontar para algum lugar no horizonte do Páramo. Salvador olha nos pertences do homem, vê fotografias e decide partir e levar o corpo aos familiares. Lúcia é contra, mas Salvador é irredutível. Mesmo sendo um homem de poucas palavras, parece um pouco inconsistente ele simplesmente ir embora, deixando mulher e filho. Faltou desenvolver melhor esse ponto.

UMA CRIATURA SINISTRA PERSEGUE A FAMÍLIA

O motivador do conflito central do filme é uma criatura que Salvador chama apenas de A Besta. Numa sequência, certa noite, os três estão próximos da lareira. Lucia conta histórias de fantasmas e monstros a Diego, que se diverte. Enquanto isso, Salvador fica sentado numa cadeira de frente para a lareira, com o olhar fixo no fogo. Quando Diego pede para a mãe contar outra história, Salvador começa a contar sobre a lenda de uma besta maligna que anda pelo mundo a procura de suas vítimas. Quanto mais as pessoas sentem medo, mais perto a besta se aproxima para mata-las. Lucia pede para ele não contar, mas Salvador prossegue. Quando Salvador vai falar sobre sua irmã, que viu a besta, Lucia pega Diego e o leva para a cama. Salvador permanece sentado olhando o fogo.

O olhar de Salvador enquanto ele conta a história e a forma como ele encara Lucia, que quer impedi-lo de seguir contando, mostra que há muito mais envolvido nessa história da besta, mas o espectador não fica sabendo. Em certo momento, Salvador diz a Diego que quando uma pessoa vê a besta, ela está condenada para sempre.

Algo que pode ser sugerido é que Salvador está afetado há muito mais tempo pela história da besta e, talvez, os momentos que ele passa observando o horizonte é como se ele estivesse alerta para a aproximação dela. Outra hipótese pode estar relacionada ao afastamento de Salvador da família. Ele deve ter acreditado que o homem ferido tenha atraído a criatura e ele decidiu levar o corpo para longe e, dessa forma, afastar a criatura de sua casa. De qualquer forma, a demora da volta de Salvador foi abalando o lado psicológico de Lúcia e ela passou a “ver” a criatura se aproximar cada vez mais da casa.

COMO A HISTÓRIA FOI CONTADA E MOSTRADA

As primeiras cenas já dão um indicativo de como o filme irá contar e mostrar a sua história. É noite e o garoto se acorda. Ele vê pequenos bonecos de barro e se assusta. Tenta pegar um penico de barro, mas o quebra. Ele vai até o quarto dos pais e Salvador leva o garoto até a latrina, que fica distante da casa. Salvador traz nas mãos uma espingarda. Isso revela não apenas os tempos perigosos que todos vivem no país, como também a preocupação do que pode estar se escondendo na escuridão imensa do Páramo. Salvador acompanha o garoto que olha pela escuridão, as figuras assustadoras formadas pelas árvores secas com seus galhos que parecem garras. Esse é o clima que vai ser predominante no filme.

A direção de fotografia usou muito dos planos abertos para mostrar a imensidão do lugar e um céu muitas vezes com nuvens, muitas vezes com tomadas de baixo para cima. As pessoas eram mostradas à distância para realçar essa diferença de amplidão e tamanho. Dessa forma, a imagem sugere uma opressão sobre todos da família, impactando tanto no emocional quanto no psicológico de cada um deles.

A chegada da criatura sinistra foi sendo construída a partir de tomadas de câmera colocada entre plantas do campo ou da beira do rio, e também atrás das árvores secas em volta da casa. Principalmente nas cenas à noite. Isso sugere que alguém ou alguma coisa estava espreitando cada um da família.

Em diversos momentos o trabalho de câmera trouxe para perto dos olhos do espectador um detalhe de um objeto, algo no cenário ou em alguma parte da locação. Esses detalhes contribuíram para criar uma passagem de tempo, reforçar algo na transformação ou reviravolta da história. Esses detalhes podem ter dado a impressão de fazer o filme ser mais lento, no entanto cada detalhe mostrado em câmera fechada se constituía em uma informação que mais adiante faria todo um sentido.

A sonografia fez a sua parte para aumentar o clima de tensão e medo. Não fugiu dos clichês em filmes de terror e suspense, mas foi eficiente. A parte de efeitos especiais, mas precisamente no caso da criatura, é a parte mais fraca. O que se vê é um boneco com uma aparência esquisita para dar a impressão que é alguma coisa maligna. Está mais para uma árvore seca com os galhos retorcidos do que um monstro. Mesmo que a intenção tivesse sido fazer uma representação de monstro que fosse mais uma projeção da imaginação das pessoas, ainda assim foi a parte mais fraca.

O filme apresenta uma clara definição em três atos. O primeiro mostra a relação em família, o conflito entre Salvador e Lúcia. O ato termina com a decisão de Salvador em deixar mulher e filho para encontrar a família do homem morto.

O segundo ato mostra Lúcia e Diego a espera de Salvador. Aqui podemos entender que o nome dele se constitui em uma metáfora. Mãe e filho tentam executar todo o trabalho na fazenda, mas o desânimo de Lúcia vai tomando conta a cada dia que passa. Em certo momento, ela diz estar vendo algo se aproximar de casa e está em algum lugar do Páramo. As árvores secas contribuem para essa impressão. Quanto mais ela reage a essa aproximação, mais o medo dela fica maior e mais próxima fica a criatura. 

O terceiro ato é o enfrentamento contra a besta que se aproxima cada vez da casa. Lúcia passa a cobrar de Diego uma postura de homem. Há uma grande reviravolta nos personagens, principalmente com Diego.

UM ELENCO FORTE

Apenas três atores e mais um figurante. Inma Cuesta desenvolve seu personagem de maneira firme e segura. Roberto Álamo conseguiu dar uma roupagem de mistério e rudeza ao seu personagem, fazendo com o espectador acreditar que o seu passado traz muita mais do pouco que ele havia contado para Diego.

O grande destaque fica com Asier Flores. O filme fica centrado nele desde o começo e, ao perceber isso, fica um sentimento de receio no espectador. Porém, Asier dá um show de interpretação e promete ser um grande nome no cinema. A grande transformação que passa o seu personagem tem por base exatamente todos os detalhes mostrados ao longo do filme, numa mistura daquilo que seu pai queria ensinar e do que a sua mãe fazia por ele.

OPINIÃO

Segundo Casademunt, em uma entrevista, o filme é sobre “nossos demônios interiores e como eles nos transformam em adultos defeituosos”. Essa declaração dá a entender que O Páramo se trata de um filme que fala do psicológico com elementos de terror. Nesse caso, a criatura que aterroriza a família pode ser identificada como uma figura alegórica que simboliza as tensões psicológicas, os medos e a solidão. Principalmente pelo fato de todos estarem isolados em um lugar muito distante de qualquer povoado.

Isso fica muito evidente nas tomadas panorâmicas de câmera. Em algumas cenas os personagens são mostrados observando a imensidão do deserto em que estão. Isso aumenta ainda mais a pequenez de cada um dentro de um mundo que parece maior do que se pode imaginar, sufocando cada um e aumentando a sua agonia desse mesmo mundo que eles observam.

O que eu percebo é que faltam elementos para percebermos melhor o que Casademunt quis nos dizer com esse filme, segundo as suas próprias palavras. Contar uma história da forma como foi contada (ou mostrada no filme) pode nos mostrar alguma coisas dos “demônios interiores”, no entanto esses “seres psicológicos”, ou seja lá o que forem, necessariamente têm uma origem. Isso não foi mostrado.

Nada sabemos sobre Lúcia e Salvador para podermos entender esse filme como psicológico. Seriam os efeitos de uma guerra que eles falam? Mas não se sabe qualquer coisa sobre ela. Outra hipótese sobre Salvador é que alguma coisa dessa guerra pode tê-lo afetado e a justificativa de levar o homem morto para seus familiares tenha sido para entrar em luta. Quando ele vê o homem ferido, ele apenas diz a Luíza: “E se ele estiver fugindo?”. Fugindo de quem: de algum inimigo que não se sabe quem é ou da besta? Por haver poucas informações sobre os personagens, tudo pode ficar subentendido ou no campo da especulação.

Há uma cena que pode nos trazer algum indício de problema ou com Salvador ou com Lúcia, ou ainda sugerir que há algum problema entre o casal que pode ter levado o relacionamento para uma situação como a que é mostrada no filme. A cena é no primeiro ato. Todos estão à mesa e comemoram o aniversário de Diego. Cada um dá o seu presente. Primeiro, Salvador dá um rifle com o nome do garoto escrito na coronha. A forma como o pai mostra a forma de usar a arma, somado ao ângulo em que a cena é mostrada, são um indicativo muito forte para mostrar que existe um problema muito sério ali. O rosto assustado de Lúcia também denuncia que há um problema, mas infelizmente a cena e a situação ficou apenas por aí. Se houvesse um desenvolvimento maior dos personagens Lúcia e Salvador, provavelmente essas questões estariam esclarecidas. Não é necessário explicar, e sim mostrar!

Igualmente é preciso se dizer que, para ser um filme de terror, deveriam ter sido cuidados alguns aspectos. O primeiro deles é a criatura. Não houve um cuidado na sua criação tanto de estrutura física quanto de movimentos e performances. A maneira como a criatura ficava na frente dos personagens não parece muito coerente com algumas coisas que ela fazei, tais como subir no telhado da casa.

O Páramo, apesar desses detalhes que eu aponto, na minha opinião é um bom filme e pode ser assistido sem críticas que o coloquem numa posição muito baixa. O IMDb (Internet Movie Database) recebeu nota 4,8 que vai até 10, enquanto que o Rotten Tomatoes recebeu 30% do voto público. Eu não vejo porque o filme ter recebido avaliação tão baixa. Há filme muito piores (verdadeiramente piores!) que já foram melhor avaliados, tanto por especialistas quanto por público. De qualquer forma, fica a minha opinião sobre o filme e a minha grande consideração pelas opiniões contrárias.

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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.