Pinóquio de Guillermo Del Toro: diferente de todos
Estreou em 9 de dezembro, na Netflix, uma adaptação de um dos contos infantis mais populares da história. Mesmo tendo chegado quase junto com outra adaptação disponível na plataforma Disney +, o filme de stop motion de Guillermo Del Toro foi, sem dúvida, muito impactante.
Paulo Bocca Nunes
A OBRA PRIMA DE DEL TORO
Desde o anúncio de Del Toro em produzir uma versão da obra de Collodi até a estreia na Netflix passaram-se 13 ou 14 anos, somando-se depois mais 2 anos e meio de produção, filmagem e finalização. Somente um sonho de realização poderia manter o diretor decidido e focado em seu projeto.
Apesar de a obra ser do século 19, o diretor Del Toro trouxe a história para mais próximo do nosso contemporâneo, colocando a narrativa dentro de um caldeirão político ao abordar o fascismo italiano e a religião. Pelo fato de não morrer, o boneco de madeira vivia uma ambiguidade: ser tratado ao mesmo tempo como um soldado perfeito para o exército de Mussolini e um demônio para os devotos do catolicismo.
A história começa em uma vila pacata em um recanto da Itália no periodo da Segunda Guerra Mundial e Mussolini era o todo poderoso chefe de Estado. Gepeto é um artesão muito conhecido e respeitado que trabalha duro para sustentar seu filho Carlo. Enquanto terminava a imagem de madeira de Jesus na igreja local, uma bomba cai de um avião e atinge a igreja, matando o garoto. A partir daí, Gepeto fica inconformado, passa a viver um luto interminável, transforma-se em um alcoólatra e passa a viver de forma precária sem terminar os trabalhos que ele começa.
Tudo é narrado pelo Grilo Falante que, por ser um peregrino, chega ao lugar e passa a ocupar o pinheiro que está ao lado da sepultura de Carlo. Ainda vivendo a sua dor, Gepeto derruba o pinheiro e com sua madeira constrói o boneco. A fada da floresta dá vida ao boneco e a partir daí a história segue um rumo que traz muitos elementos da história original.
O filme tem um tom sombrio, um pouco gótico, que faz uma forte representação da vida das pessoas na história contada por Del Toro. Pessoas humildes, com dificuldades para produzirem o seu sustento têm apenas o padre como alguém mais esclarecido. No entanto, o semblante também sombrio contribui para a sua personalidade julgadora e condenatória com base nos princípios religiosos cristãos.
Pinóquio é rejeitado por toda a comunidade por ser considerado uma aberração e uma obra demoníaca. Um dos maiores detratores do boneco é o padre que influencia as pessoas locais. A imagem de Pinóquio, um boneco de madeira um tanto disforme, contribui para essa rejeição por parte de todos. Inclusive, o próprio Gepeto, a princípio, trata o boneco como uma força demoníaca e demora um tempo para compreender a razão dele estar lá.
A fada que deu vida a Pinóquio incumbiu o Grilo Falante de ser o seu mentor e conselheiro. Porém, ele não consegue conter as curiosidades de Pinóquio e esse se mete em problemas bastante complicados, como foi o caso do aristocrata circense chamado Conde Volpe, que tem um ajudante, chamado Spazzatura e é um macaco. Esse personagem é um elemento trazido da história original de Collodi, um sujeito ambicioso e explorador de pessoas transformadas em atração circense.
Outro personagem, o Podestà local, que significa um antigo título italiano e significa alguém com autoridade e poder, inicialmente desconfia de Pinóquio, mas depois de saber que o boneco de madeira não morre, passa a vê-lo não apenas como um aliado, como também um soldado ideal para a causa do sistema político da época.
A pequena comunidade se volta contra Gepeto e Pinóquio, mas a simpatia infantil do boneco, que precisa aprender tudo, apesar de ser irreverente, mal comportado e muito desobediente, vai conquistando o coração do velho artesão, que espera que Pinóquio seja como o seu falecido filho Carlo, algo que incomoda Pinóquio.
Pinóquio é inocente e ingênuo, apesar de tudo, e isso faz com que percebamos a evolução do personagem através das aventuras que vive. Quando foi levado pelo Conde Volpe, o boneco passou a ser cobiçado também pelo Podestà. A única coisa que Pinóquio queria era ajudar seu pai, Gepeto. Alguns elementos que estavam na história original são trazidos para a narrativa de Del Toro. O peixe gigante, que lembra a jornada de Jonas, personagem bíblico. A Quimera que informa Pinóquio de que ele é imortal, mas isso até o momento em que ele decidir não querer mais esse privilégio. Mas, o mais marcante é a amizade que se forma entre o boneco de madeira e o filho do Podestà. Nessa relação, há o conflito do garoto que tem um pai obcecado pelos princípios políticos impostos por Mussolini e não dá a atenção que o garoto gostaria. O jovem se mostra intimamente contrariado por algo que, no fundo, não gostaria, mas é forçado pelo pai a seguir os mesmos passos. Nesse ponto, a inocência de Pinóquio transforma os dois.
Gepeto precisou aprender a sua própria lição. Durante anos, ele fechou-se em si mesmo, trancando-se em seu luto e dor, sem querer dar a menor chance a si mesmo. Chegou ao ponto de mostrar revolta com Deus por ter permitido que seu filho Carlo morresse ainda tão jovem. Somente com a presença de Pinóquio, Gepeto vai percebendo que algo é possível ser feito para sair dessa prisão que ele mesmo deu a si mesmo.
Del Toro converteu a narrativa original do boneco de madeira que sonhava ser um menino de verdade, mesmo não tendo um coração de verdade, em uma história sobre a fragilidade da vida, suas frustrações, sofrimentos, reviravoltas e o papel da morte dentro desse imenso contexto. A morte é representada pela Quimera e seu relógio que marca o tempo que limita o prazo da vida. A forma como o diretor retrata os valores familiares e como eles são falhos podem não ser os mais profundos, no entanto privilegia o espectador com momentos interessantes entre Pinóquio e Gepeto. Por sinal, as ações de cada um falam muito mais do que os diálogos entre os dois.
Se a história original e clássica nos apresenta personagens inseridos em um contexto histórico vivendo as dificuldades de vida que os tornam seres alienados, Del Toro conduz a sua narrativa para se constituir em uma criação própria e uma obra única.
O diretor mexicano deu um tratamento a alguns elementos para se ransformarem em metáforas a serviço da obra. O mais destacado é o peito de Pinóquio. O buraco que havia, quando a árvore estava de pé e por onde entrou o Grilo Falante, passou a ser a representação de duas coisas: o coração, que se rende a todas as fraquezas e a morada de uma consciência que deve manter o ser centrado em um caminho racional.
Há uma mensagem implícita de que uma mentira pode salvar a vida, quando os personagens principais precisam escapar de dentro do monstro marinho. Para isso, Pinóquio dizia mentiras para fazer o nariz crescer. Inclusive, esse aspecto é reforçado pelo próprio Gepeto que, naquele momento, via como a única forma de todos se salvarem.
O filme nos mostra como a aproximação entre os personagens se transformam em relações e como elas consistem em elementos que modificam uns aos outros e cada um a si mesmo. Não se constitui apenas em uma narrativa que faz com que personagens interajam entre si e cada um mostra alguns aspectos de personalidade e caráter.
Pinóquio se torna um elemento transformador dos outros personagens, inclusive do macaco Spazzatura. Sob a narração do Grilo Falante, observamos a trajetória do personagem principal na sua transformação e dos outros personagens. O final, em determinado momento, causa estranhamento para logo em seguida se constituir na essência de todo o filme.
Pinóquio de Guillermo Del Toro pode não ser a sua melhor obra, porém, mesmo tendo a concorrência de outra versão da Disney, mesmo que não tenha a profundidade dos temas que o filme aborda, a obra do diretor mexicano é de longe a melhor versão da narrativa de Collodi. Também uma aula para o espectador de como fazer uma adaptação de um clássico tantas e tantas vezes adaptado, se constituir em uma obra de arte do cinema.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.