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Profecia do Inferno: será tão assustador e violento quanto se diz?

Uma série sul-coreana chegou em 2021 na Netflix e fez sucesso muito rápido. Trata-se de Profecia do inferno. Tanto a crítica quanto o público afirmam, de um modo geral, que essa série é mais violenta que Round 6, outra série sul-coreana. Mas, será que isso é verdade?

Por Paulo Bocca Nunes

Profecia do Inferno” é uma série de streaming sul-coreana do gênero fantasia sombria, dirigida por Yeon Sang-ho, baseada em uma webtoon de mesmo nome criada por ele. O roteiro, no entanto, foi escrito por Choi Kyu-sok A série estreou na Netflix em 19 de novembro de 2021 e se tornou a série mais assistida do serviço no dia seguinte, ultrapassando o também coreano Round 6, que foi lançado dois meses antes.

A história se passa entre 2022 e 2027 na Coreia do Sul. Certo dia, um rosto de outro mundo que foi chamado por “anjo” começa a se materializar para entregar profecias chamadas “decretos” que falam o dia e a hora em que certas pessoas irão morrer e irem para o Inferno. O tempo pode ser dias, meses, anos ou até mesmo segundos.

No tempo marcado, três monstros sobrenaturais gigantescos e de aparência tão grotesca quanto assustadora aparecem para bater e incinerar o corpo da pessoa. Tudo pode acontecer no lugar em que a pessoa estiver: sozinha ou em local público, na frente de outras pessoas.

Os eventos passam a ser explorados por uma seita que se nomeia como a Sociedade da Nova Verdade, um streamer mais parecido com um tipo de youtuber, chamado Skull Mask e uma gangue chamada de Arrowhead. Sua função é a de fazer a justiça divina com as próprias mãos. Na verdade, os dois grupos buscam um domínio sobre as pessoas através do medo, pois dizem que as mortes acontecem pela vontade de Deus de punir aqueles que pecam ou cometem graves erros.

A série possui um total de seis episódios. Os três primeiros se concentram em Jin Kyeong-hoon, um detetive que investiga as mortes sem aceitar a ideia de algo sobrenatural, e em Jeong Jin-soo, o presidente da Sociedade Nova Verdade. Usando um tom de voz melodioso, calmo e tranquilo, Jeong afirma que tudo é a manifestação da justiça de Deus. 

O grande conflito se concentra em Jin, que sofre pela morte de sua esposa por um criminoso e que passou pouco tempo na cadeia. Ele também precisa administrar sua relação com a filha adolescente que também se converteu em uma das seguidoras da Nova Verdade.

Nesses episódios há destaque para uma advogada que busca defender as pessoas que dizem ter recebido a visita do anjo, a Nova Verdade quer comprar os direitos das pessoas na transmissão pela TV de suas execuções. Essa advogada será o elo que ligará a segunda parte da temporada.

Os três episódios ocorrem 5 anos depois e se concentram no novo presidente na Sociedade Nova Verdade e em Bae Young-jae e sua esposa. Os dois receberam a visita do anjo que anunciou a condenação do filho dos dois, um bebê de poucos meses de vida. Esse fato vai contra os ensinamentos da Nova Verdade, pois uma criança não pode ser pecadora, pois ainda é muito nova para ser dona de suas decisões e responsável pelos seus atos.

ANALISANDO A SÉRIE

Tudo começa com um homem sentado em uma lancheria e observando as horas no celular. Muitas pessoas dentro do estabelecimento e passando pela rua. O homem aparenta estar muito assustado. De repente, ouve-se um barulho de fortes pisadas no solo e entram na lancheria três gigantes sombrios e assustadores. O homem sai correndo do local e foge pelas ruas. Os três gigantes vão atrás até que pegam o homem, batem nele até que finalmente, derrubado e muito machucado, ele é incinerado pelos três. Terminado tudo, os três vão embora atravessando uma espécie de portal. A polícia é chamada e o policial, Jin Kyeong-hoon, começa a fazer as investigações.

Durante as investigações surgem três fatos relacionados: a ascensão de uma nova forma de religião, a Sociedade Nova Verdade, que através de seu presidente, Jeong Jin-soo, afirma que tudo é a decisão de Deus que mostra às pessoas as consequências do pecado e que elas pessoas devem pagar pelos seus erros; o crescimento do streamer Dongwook, que faz os seus vídeos com o rosto todo maquiado e com uma peruca, e fala desses casos de justiça divina em seu canal, fomenta o ódio contra os pretensos “pecadores” que são condenados ou que não aceitam essa justiça divina e incentiva as pessoas a irem atrás não apenas desses “pecadores” como também de seus familiares; e uma espécie de força justiceira, a Arrowhead, que executa as ações que o tal maquiado incentiva a fazer, ou seja, descobre esses pecadores e os agride, muitas vezes até a morte.

Esses três aspectos mostram um lado sombrio do ser humano: o domínio pelo medo através do desconhecido, algo promovido pelo surgimento de uma manifestação sobrenatural. Ao serem transformadas essas manifestações e condenações em uma justificativa para ser criada uma religião e o seu crescimento através da espetacularização das execuções, se percebe que o crescimento de adeptos permite que essa nova religião exerça um poder impressionante na sociedade em pouco tempo.

Mais impressionante é a forma como as pessoas que discordam das ideias desse grupo religioso são tratadas ou são hostilizadas pelos adeptos. O medo se estabelece entre os que sofrem perseguição religiosa e os que temem receber a mensagem de uma condenação.

Essas questões são bastante claras nos primeiros três episódios que funcionam quase como uma primeira temporada dentro da mesma temporada. As ações do inspetor Jin e os seus conflitos, tanto com a sua filha quanto com o assassino de sua esposa, e mais as investigações que faz sobre a Nova Verdade, que usa muito as condenações sobrenaturais para aumentar a sua influência e o crescimento de sua religião, traz questionamentos pesados sobre as condutas humanas e como elas interferem a partir do individual e se infiltra na própria sociedade. 

O posicionamento materialista de Jin contra as questões dentro de uma esfera espiritual e moralizadora de Jeong são os pólos mais contundentes dessa parte inicial. O próprio Jeong mostra que sabe muito sobre Jin e os problemas que ele enfrenta e usa isso para tentar afastar o investigador. Inclusive, usa a própria filha de Jin para isso, pois ela se converte à Nova Verdade.

Outro ponto importante nessa análise que o roteiro propõe é a advogada Min Hye-jin. Ela defende uma mulher, Park Jung-ja, que recebeu a condenação do tal “anjo” e procurou ajuda, pois tem dois filhos e não quer morrer. No entanto, em nenhum momento se sabe qual foi o erro ou o pecado que ela cometeu. Se por um lado as condenações e execuções são vistas e divulgadas pela Nova Verdade e pelo influenciador digital como “justiça de Deus” a advogada surge como a representante da justiça humana. Inclusive isso será reforçado na cena final do último episódio da série.

Min, no entanto, é vista como uma pecadora porque não seguiu a forma como as pessoas se manifestaram depois da execução mostrada em forma de espetáculo de Park. A partir daí, ela passou a ser perseguida e se tornou uma forte oponente da Nova Verdade. No entanto, ela e um grupo passaram a investigar a instituição para provar que a instituição é uma grande farsa que explora o medo e busca exercer um poder sobre a sociedade. Isso se revela na segunda parte da série, ou seja, nos três episódios finais e se desenrola cinco anos após os primeiros acontecimentos. 

Inclusive, nessa segunda parte da temporada se pode observar o quanto a Nova Verdade cresceu e desenvolveu seus dogmas, seus rituais e como ela enriqueceu em tão pouco tempo. Isso sem contar com o poder que ela exerce tanto religioso quanto espiritual.

A oportunidade que Min e seu grupo esperava para desmascarar a Nova Verdade surge quando o bebê de um jovem casal, o produtor de TV Bae Young-jae e Song So-hyun, recebe a condenação de morte e ir para o inferno. A pergunta que se fazia: “Como pode um bebê ser condenado à morte por um pecado que certamente não cometera?”. Além dos debates sobre esse fato entre os personagens envolvidos, isso também sai da tela para a vida real. De modo geral, algumas crenças e religiões falam no pecado original, na constante necessidade de renascimento para pagar por erros passados. No entanto, ninguém pode dizer quais são esses erros, pois se viemos ao mundo como bebês, e se tudo isso fosse realmente uma verdade, não se traz a lembrança desses erros. E ainda assim, havendo essa possibilidade, se a criança veio ao mundo, por que tirar dela a oportunidade de resgatar ou pagar de outra forma que não seja a danação eterna no inferno?

Min foi às últimas consequências para provar que a Nova Verdade era uma fraude e a Nova Verdade buscando todas as formas de evitar que a execução do bebê fosse pública. Caso isso acontecesse, ela seria ridicularizada e todos os seus dogmas e ensinamentos seriam vistos como enganosos. 

Acredito que o questionamento mais importante que essa série trouxe diz respeito não ao poder em si que as religiões exercem sobre as pessoas, mas como elas se mostram como aquelas instituições que sabem e podem interpretar os desígnios divinos e assim se tornarem as mediadoras entre os planos material e espiritual. Os líderes da Nova Verdade sabem que tudo o que eles pregam não se constitui em outra verdade que não seja a sua forma de exercer uma forma de poder sobre as pessoas. Em certo momento chega a ser cômico quando o líder máximo da Nova Verdade questiona a necessidade dele usar novos gestos e performances em determinados rituais e como os seus ajudantes buscam resolver isso.

UMA FORTE SIMBOLOGIA NA SÉRIE

Uma das coisas que eu considero intrigantes e são mostradas de forma simbólica é a forma como os três seres executam os condenados: ao imporem as mãos sobre o condenado, delas saem fachos de luz que incineram a pessoa. Esse gesto de imposição das mãos é muito comum em vários cultos religiosos.

Em religiões espiritualistas há o chamado “passe” em que o médium impõe as mãos sobre uma pessoa como forma de passar um fluxo de energia que parte do mundo espiritual. Dessa forma, a pessoa recebe essa energia para trazer benefícios tanto físicos quanto espirituais. O médium, como o nome já diz, é apenas o intermediário dessa energia. O gesto é, portanto, carrega em si uma forte simbologia de ligação com o divino. 

Também observa-se esse gesto de imposição de mãos em direção ao público quando em religiões cristãs os padres ou os pastores erguem as suas mãos durante as pregações ou suas preces. Aqui igualmente encontramos o mesmo aspecto simbólico que faz deles os mediadores entre o poder do divino e a humanidade, trazendo os benefícios dessa mediação, ou seja, a energia que irá curar os males físicos e espirituais.

O que a série nos mostra é a mesma simbologia de imposição de mãos, que se diz representar uma decisão de Deus para com aqueles que foram condenados ao inferno. Mais impressionante é a forte luz que sai das mãos dos três executores sobrenaturais. Os três batem muito nos condenados antes de queimá-los e só isso já bastaria para matar a pessoa e levar a sua alma para o inferno. Então, por que esse simbolismo das mãos? Seria uma forma de confrontar ainda mais as religiões e os seus rituais muitas vezes cheios de encenação, conforme é mostrado na série?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alguns analistas de cinema dizem que essa série é mais violenta que outra produção coreana, Round 6. Sinceramente, eu não poderia concordar com isso pelo fato de as duas séries terem uma temática totalmente diferente. Enquanto Round 6 envolve aspectos especificamente humanos, Profecia do inferno usa de elementos sobrenaturais para servir de pano de fundo para a sua trama. Enquanto podemos questionar o comportamento e as ações humanas em uma série em que pessoas se veem forçadas a participarem de um jogo por se verem sem qualquer alternativa de solução para os seus problemas, mesmo que suas vidas façam parte das consequências de um não sucesso, as criaturas que executam as condenações e o anjo que aparece não fazem parte de uma explicação lógica para o nosso entendimento. 

Em uma série há uma racionalidade, tanto dos personagens como do espectador, que nos mostra a face do ser humano. Por outro lado, aqueles que foram condenados e executados em Profecia do inferno não tiveram revelados quais seriam os seus pecados. Mas, e se fossem? Isso seria importante para dizermos que a “decisão divina”, pregada pela Sociedade Nova Verdade, está correta? Se constitui a morte na solução para os erros humanos? A afirmação de que Profecia do inferno é mais violenta não seria pelo medo humano de que seja possível alguma forma de castigo por parte de Deus e nunca sabermos como isso virá, nem quando? E isso é recorrente também naqueles que não acreditam em Deus? Essa questão toda ficou explícita na última cena do último episódio, quando um motorista de táxi fala a Min Hye-jin: “Eu posso não saber nada sobre Deus. Mas, sei que as questões humanas têm que ser resolvidas por nós, humanos”.

Se eu encontro, portanto, essas questões entre as duas séries, e isso me mostra que são aspectos totalmente diferentes, um no plano humano e outro no espiritual, não vejo como comparar a questão violência. Aliás, se aceitarmos que há uma condenação divina e se for algo parecido como está no filme, isso seria visto como “violência”?

Uma ligação entre as duas séries foi, certamente, os escolhidos mascarados para assistirem a execução de Park Jung-ja, enquanto que em Round 6 havia os Vip, pessoas muito endinheiradas que assistiam aos jogos em uma sala especial com todas as mordomias e o luxo que o dinheiro de cada poderia pagar.

Talvez outros questionamentos venham com a provável, ou quase certa, segunda temporada. A última cena do último episódio, quase como uma cena pós-crédito, mostra o local em que Park Jung-ja foi executada. O local foi preservado como uma forma de santuário e o corpo incinerado foi deixado no mesmo lugar, dentro de uma caixa de vidro. No entanto, o corpo vai retomando a sua forma e vemos ela voltando à vida.

Que respostas trará a segunda temporada? O que irá fazer Park? Ela será mostrada como mais uma prova contra a Nova Verdade? Ela trará alguma informação do tempo em que ficou no inferno? Ela irá atrás de seus filhos que foram levados para a América? Outra coisa que nada sabemos, mas poderá ser explicada na segunda temporada é o que levou o bebê de Bae Young-jae e Song So-hyun ser poupado e os pais executados?

Espera-se que essas perguntas tenham respostas na segunda temporada. Não se tem ainda qualquer informação a respeito. Porém, o sucesso de público e crítica da série levará tanto a Netflix quanto Yeon Sang-ho e (quem sabe?) Choi Kyu-sok a um acordo.

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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.