A Ficção Científica do Século XIX
O gênero de ficção científica tem sido o centro de debates e estudos desde a metade do século XX e ainda hoje nas primeiras duas décadas do XXI. No entanto, há uma produção literária no século XIX que contribuiu muito para o estabelecimento e a consolidação do gênero nos dois séculos seguintes. Neste artigo, mostraremos dezesseis obras do século XIX que são consideradas como pertencentes ao gênero ficção científica.
Paulo Bocca Nunes
Quando se fala nas primeiras obras de ficção científica, muitos especialistas em literatura apontam para o século XIX e as obras mais conhecidas de Mary Shelley (Frankenstein, 1818), Júlio Verne (Da Terra à Lua, 1865 e Vinte Mil Léguas Submarinas, 1870) e H. G. Wells (A Máquina do Tempo, 1895, e A Guerra dos Mundos, 1898). Esses autores e essas obras são consideradas como essenciais para o surgimento do gênero de ficção científica.
A ciência daquele período poderia não ter os avanços que temos atualmente, no entanto possuía mais do que em épocas anteriores em que algumas ficções foram reconhecidas como “proto ficção científica”. Sendo assim, podemos entender que as obras ficcionais do século XIX, que tenham fundo científico em seu enredo, pertençam a uma fase de transição, que se antecipa às produções pulp fiction do começo do século XX. Essas, sim, foram fundamentais para a consolidação do novo gênero literário.
Ao longo do século XIX foram publicadas outras obras que trazem elementos comuns a outras obras de ficção científica que conhecemos atualmente, tais como viagens espaciais, contatos com seres extraterrestres e sociedades distópicas. Algumas dessas obras, de certa forma, também inspiraram um subgênero da ficção científica que se consagrou entre as décadas de 1980 e 1990, o Steampunk.
Algumas das obras descritas abaixo são em francês e alemão. A maioria em inglês e não tem publicação em português, no entanto iremos colocar os seus títulos em português, na medida do possível.
1. The Last Man (O Último Homem) (1805), Jean-Baptiste Cousin de Granville. A história fala sobre o fim da raça humana. Com base no relato tradicional do Apocalipse, O Último Homem se constitui na primeira história do fim do mundo na ficção futura.
2. Breve história de uma notável viagem aérea e descoberta de um novo planeta (1813), Willem Bilderdijk. Nesse romance, o protagonista se gaba de ser capaz de construir um balão capaz de levantar pessoas e deixá-las voar com o ar. No entanto, os gases utilizados revelam-se mais potentes do que o esperado e passado algum tempo o balão chega a um planeta entre a Terra e a Lua. Willem Bilderdijk usa sua história para apresentar uma visão geral do conhecimento científico sobre a Lua. Vinte anos depois, algumas semelhanças com esse romance são encontradas no conto de Edgar Allan Poe: A aventura inigualável de um certo Hans Pfaall.
3. O mundo como ele será (1846) de Émile Souvestre. Em 1840, um jovem casal parisiense, Marthe e Maurice, profundamente apaixonados, felizes e idealistas, se perguntam sobre o futuro do mundo. Eles desejam ardentemente conhecer o futuro, para verificar se os sonhos que eles têm se tornarão realidade. Sem realmente acreditar, Marthe vem invocar o gênio protetor de seu tempo. Então, a bordo de uma “locomotiva inglesa”, surge um homenzinho curioso, parecendo “um banqueiro complicado com um notário”. Este é o Sr. John Progrès, que se oferece para colocar os pombinhos para dormir para permitir que eles descubram o mundo do ano 3000.
4. Star ou Psi de Cassiopeia (1854), de Charlemagne Ischir Defontenay. O narrador da história conta que descobriu no Himalaia uma pedra que caiu do céu. Ao abri-la, ele vê que contém uma caixa de metal onde havia alguns manuscritos em papel. Após dois anos de estudo, ele conseguiu decifrá-los e descobriu que eles descreviam as sociedades alienígenas de várias raças humanóides que vivem na constelação de Cassiopeia. Um conjunto de criaturas eram humanóides imortais de cabelos azuis de 2,7 metros de altura. A obra é considerada como um exemplo de proto ópera espacial.
5. The coming race (1871), pode ter uma tradução livre por A próxima raça. A história segue um jovem viajante que explora um abismo dentro de uma mina onde descobre uma raça humanoide altamente desenvolvida, os Vril-ya. Eles são descendentes de civilização antediluviana e possuem habilidades sobre-humanas. A história do passado desse povo faz com que o narrador afirme que essa será a próxima raça a dominar o planeta.
6. Tido como um dos primeiros romances de ficção científica do gênero ópera espacial, Lumen (1872), de Camille Flammarion, foi escrito na forma de um diálogo filosófico entre um espírito cósmico chamado Lúmen que revela os segredos do Universo e todas as suas maravilhas a Quaerens, um jovem que busca o pleno conhecimento. A obra se constitui mais em algo filosófico e espiritual do que em uma ficção científica.
7. A obra de Edward Maitland, By and By (1873), é considerado um romance de ficção científica e foi uma das obras influentes do século XIX, junto com Anais do Século 29 (1874), Através do Zodíaco (1880) e Uma Jornada Por Outros Mundos (1894). Traz uma história que envolve aspectos de uma sociedade futura, uma forma de utopia.
8. Annals of the Twenty-Ninth Century (1874). A história se passa numa era futura na qual os povos da Terra foram unidos em uma “República Mundo-Lunar” cristã, e outros planetas do sistema solar foram alcançados e seus habitantes nativos encontrados. Enquadra-se mais nas histórias em que os autores se concentram nas descrições de sociedades futuras.
9. Através do Zodíaco (1880), de Percy Greg, é considerada como a precursora do subgênero Espada e Planeta da ficção científica. A história traz detalhes da criação e o uso da apergia, uma forma de energia antigravitacional, e detalha um voo para Marte em 1830. O planeta vermelho é habitado por seres diminutos e estão convencidos que a vida não existe em outro lugar senão em seu mundo. Também se recusam a acreditar que o narrador sem nome é realmente da Terra, mas de algum lugar remoto de Marte. Essa obra traz algumas curiosidades. O narrador do livro chama sua espaçonave de Astronauta, sendo possivelmente a primeira vez que essa palavra é usada em uma obra. O livro contém o que provavelmente foi a primeira língua alienígena em qualquer obra de ficção. Seu projeto de nave espacial também apresentava um pequeno jardim, uma previsão inicial da hidroponia. O mesmo título foi usado para um livro semelhante posterior (Across the Zodiac: A Story of Adventure – 1896), de Edwin Pallander (1869–1952, pseudônimo do biólogo, botânico e autor britânico Lancelot Francis Sanderson Bayly). Pallander copiou alguns elementos da trama de Greg.
10. The Great Romance, Anônimo, 1881. A história segue o protagonista, John Hope, que desperta de um sono de 193 anos. Hope tinha sido um cientista proeminente de meados do século XX, que havia desenvolvido novas fontes de energia que permitiam viagens aéreas e exploração espacial. Ao acordar em 2143, ele é recebido por Alfred e Edith Weir, descendentes de John Malcolm Weir, o químico que preparou o produto que Hope havia tomado em 1950 e o colocou adormecido. Hope descobre que as pessoas do futuro desenvolveram habilidades mentais poderosas. Ele se junta a Alfred Weir e outro cientista, Charles Moxton, em um plano para levar uma nave para o planeta Vênus. A obra tem características especulativas de como um ser humano poderia sobreviver no espaço sideral sem ar e sem gravidade.
11. Diothas, ou Um Olhar Distante (1883), de John Macnie, é um romance utópico narrado em primeira pessoa. O narrador passa por uma sessão de hipnotismo e acorda em um futuro distante; ele passou de repente “do século XIX para o século noventa e seis…” [4] Na companhia de um amigo e guia chamado Utis Estai, o narrador começa a aprender a natureza deste mundo futuro. Ele é apresentado à enorme cidade de “Nuiorc”, o futuro desenvolvimento da cidade de Nova York ; e ele viaja com seu guia para a casa de Utis nos subúrbios. Ele aprende com Utis e outros sobre a estrutura e as instituições desta futura sociedade.
12. Olhando Para Trás: 2000–1887 (1888), de Edward Bellamy é uma das obras mais comentadas e aclamadas do gênero do século XIX. O romance de viagem no tempo conta a história de Julian West, um jovem americano que, no final do século 19, cai em um sono profundo induzido pela hipnose e acorda 113 anos depois. Encontra-se no mesmo local ( Boston, Massachusetts ), mas num mundo totalmente mudado: é o ano 2000, e enquanto dormia, os Estados Unidos transformaram-se numa utopia socialista. A obra traz reflexões sobre a sociedade capitalista e propostas de soluções socialistas. Apesar de a história não apresentar aspectos de uma tecnologia avançava para se constituir em uma ficção científica, ela apresenta alguns produtos que fazem parte da vida da sociedade moderna, como uma espécie de cartão de crédito.
13. Um Mergulho No Espaço (1890), de Robert Comie, conta a história de um grupo de aventureiros científicos, que constrói uma nave espacial com o propósito de explorar Marte. O dispositivo motor é um escudo que protege contra a gravidade da Terra enquanto é atraído por Marte. Na viagem de volta, eles descobrem um clandestino – uma garota marciana. Os sistemas de suporte de vida da nave não garantem a permanência de um passageiro extra, e cada membro da tripulação tem alguma habilidade essencial para trazer a nave com segurança para a terra. A garota, no entanto, se torna a chave para a vida – ou morte – para os viajantes espaciais.
14. Na Lua (1893), de Konstantin Eduardovich Tsiolkovski, foi originalmente publicada na revista de Moscou Vokrug Sveta, um ano antes. Ele produziu trabalhos científicos sólidos sobre aeronaves e espaçonaves com propulsão a jato. A história é uma mistura de pura fantasia com ideias científicas sólidas. De um modo geral, a obra parece focar mais em conhecimentos científicos do que em desenvolver uma narrativa que envolva o leitor.
15. O anjo da revolução: um conto do terror vindouro (1893), de George Griffith, conta a história de um grupo de autodenominados ‘terroristas’ que conquistam o mundo através da guerra de aeronaves. Liderados por um homem que tem uma filha, o ‘anjo’ Natasha, ‘A Irmandade da Liberdade’ estabelece uma ‘paz aeronáutica’ sobre a terra depois que um jovem inventor passou a dominar a tecnologia de voo em 1903. O herói se apaixona com Natasha e se junta em sua guerra contra a sociedade estabelecida em geral e o czar russo em especial. Apesar de tratar de questões sociais e políticas, o romance aborda uma especulação científica importante: aeronaves autônomas.
16. Viagem a Marte (1894), de Gustavus W. Pope. A história segue um tenente, Frederick Hamilton, em uma viagem à Antártida. Ele resgata um homem de aparência estranha, mas de repente ele mesmo perde a consciência. Hamilton acorda três semanas depois, a bordo de uma nave espacial viajando para Marte. Em Marte, Hamilton conhece três raças humanas: marcianos vermelhos, amarelos e azuis, que alcançaram uma tecnologia sofisticada enquanto preservavam uma sociedade feudal. Hamilton envolve-se em diversas situações, inclusive em um caso amoroso com uma das marcianas.
17. Uma Jornada Por Outros Mundos (1894) John Jacob Astor IV. A história se desenrola no ano 2000. Há muitas especulações sobre invenções tecnológicas, incluindo descrições de uma rede telefônica mundial, energia solar, viagens aéreas, viagens espaciais para os planetas Saturno e Júpiter e projetos de engenharia de terraformação, entre outras.
18. Um romance profético: Marte para a Terra (1896), de John McCoy é um romance utópico e outra referência da grande onda de literatura utópica e distópica que caracterizou as últimas décadas do século XIX. A história é escrita como se fosse um conjunto de relatórios de um funcionário do governo marciano, o Lorde Comissário. Ele foi enviado à Terra pelo “Chanceler Comandante” de Marte, o chefe do governo unificado daquele planeta, para relatar as condições terrestres. No romance, os marcianos são mais avançados que os humanos e exploraram o sistema solar. A época da história não é especificada, mas o texto sugere seja o final do século XX.
19. Através do Zodíaco: Uma História de Aventura (1896), de Edwin Pallander, traz fortes influências de Júlio Verne. Uma espaçonave chamada The Astrolable, pilotada por um cientista maluco com aversão a todas as coisas russas, pega o manto de Nemo e voa para Vênus, via lua, onde uma civilização perdida é descoberta. A história tem peripécias de aventura, como diz o título. Apresenta também muitos pontos em comum com a obra de Percy Greg, inclusive o próprio título.
20. Dois Planetas (1897), de Kurd Lasswitz narra a história em que um grupo de exploradores do Ártico encontra uma base marciana lá. Os alienígenas se parecem com as pessoas da Terra em todos os aspectos, exceto por terem olhos muito maiores, com os quais podem expressar mais emoções. Seu nome para os habitantes da Terra é “os de olhos pequenos”. Os marcianos são altamente avançados e inicialmente pacíficos. Eles levam alguns dos exploradores de volta com eles para visitar Marte. A sociedade marciana parece ser esclarecida, pacífica e altamente avançada no início, mas depois os exploradores descobrem um plano para colonizar a Terra.
21. A Conquista de Marte por Edison (1898), de Garret Serviss. A história é uma continuação de “Fighters from Mars”, uma versão não autorizada e fortemente alterada da história de HG Wells, A Guerra dos Mundos, da versão que foi publicada na revista Persons’ Magazine, em 1897. A história é situada após o devastador ataque marciano na história anterior (Fighters From Mars). Thomas Edison lidera um grupo de cientistas para desenvolver naves e armas, incluindo um raio de desintegração para a defesa da Terra. Há descrição de batalhas espaciais que poderiam incluir a obra no subgênero ópera espacial.
22. A Quem Isso Pode Chegar (1898), de Edward Bellamy. Os temas da história são telepatia e sociedade utópica. O narrador viaja em um navio que se desfaz deixando-o como o único sobrevivente. Ele está preso em uma ilha remota habitada por um povo com a capacidade de ler mentes. Essa habilidade especial, que evoluiu, aliviou muitos dos medos e ansiedades que afligem a vida moderna no resto do mundo, como mentiras, crimes e problemas de relacionamento. O narrador acaba sendo resgatado e retorna aos Estados Unidos, onde revela suas experiências.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.