A Jornada Da Ficção Científica
Entre a Imaginação e a Ciência
A ficção científica é um gênero literário e fílmico que chama a atenção do público pelos efeitos especiais. Nem tanto pelo tema ou pela profundidade do assunto da trama. Nada garante um sucesso imediato tanto de um romance quanto de um filme ou de uma série. Principalmente quando a maioria dessas obras fílmicas estão disponíveis nas plataformas de streaming.
Paulo Bocca Nunes
O Berço Mítico da Imaginação Científica
Antes de existir a ciência como a conhecemos, já existia a necessidade humana de entender o mundo — e, com ela, as histórias. Olhar para o céu, para os astros em movimento, para os raios e trovões, era mergulhar no desconhecido. Como explicar o que está além da compreensão? Criando narrativas. Mitos, lendas e epopeias não eram apenas ficção: eram tentativas de dar sentido àquilo que escapava aos olhos e à razão. A ficção, nesse sentido, nasceu antes mesmo da ciência — como um ato de sobrevivência cultural, como um exercício de imaginação.
O ser humano sempre quis saber de onde veio e para onde vai. A necessidade de narrar, de dar nome às coisas e criar sentido para o que é misterioso, acompanha nossa espécie desde suas origens. Quando ainda vivíamos em cavernas, já olhávamos para o céu com assombro e desejo de compreender. Esse espanto original foi o berço da ficção — e da ciência.
Na Antiguidade, filósofos e pensadores como Anaximandro, Pitágoras e Aristóteles tentaram entender o cosmo com as ferramentas disponíveis. Suas ideias — algumas geniais, outras errôneas — serviram de base para séculos de pensamento. As histórias de deuses, monstros e mundos alternativos, muitas vezes, misturavam-se ao que se pretendia como conhecimento.
No século II, Luciano de Samósata escreve História Verdadeira, uma sátira que inclui uma viagem à Lua e guerra entre povos celestes. Embora cômica, é talvez o primeiro registro de uma narrativa com elementos que hoje seriam classificados como ficção científica.
Durante a Renascença, obras como A Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon, e A Cidade do Sol (1602), de Tommaso Campanella, apontam para uma utopia racional, uma sociedade moldada por um saber científico e organizado.
Da Revolução Científica à Ficção Antecipatória
Foi com a Revolução Científica, entre os séculos XVI e XVII, que o pensamento racional ganhou nova força. Giordano Bruno falava de mundos infinitos — e foi queimado por isso. Galileu Galilei, com sua luneta, viu montanhas na Lua e foi obrigado a silenciar. Kepler decifrou leis do movimento planetário, e Newton consolidou os princípios da física clássica. A ciência ganhava forma, mesmo enfrentando resistência.
Mas enquanto a ciência avançava em sua busca por verdades empíricas, a ficção não ficou para trás. No século XIX, Mary Shelley escreveu Frankenstein (1818), uma narrativa que misturava ciência, ética e imaginação. Jules Verne nos levou ao centro da Terra, às profundezas dos mares e à Lua. H. G. Wells imaginou máquinas do tempo, homens invisíveis e guerras entre mundos. Eles escreviam no calor de uma Revolução Industrial que mudava rapidamente o mundo.
A literatura se torna reflexo e crítica dessa nova ordem. E a ficção científica, ainda sem esse nome, vai se desenhando como um território onde o futuro é uma tela em branco para pintar os medos e as esperanças do presente.
O Século XX e a Consolidação do Gênero
O século XX viu o nascimento oficial da ficção científica enquanto gênero literário. Hugo Gernsback, com suas revistas pulp, deu nome ao gênero e abriu caminho para autores como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Ray Bradbury. As páginas das revistas estavam repletas de aventuras no espaço, robôs conscientes, distopias tecnológicas e civilizações alienígenas.
A ficção científica se tornava um espelho da ciência — mas também uma crítica social, uma alegoria política e um laboratório ético.
Com o avanço tecnológico, o gênero ganhou novas formas. O cinema, a televisão, os quadrinhos, os mangás e, mais recentemente, os jogos eletrônicos e as séries de streaming, todos passaram a explorar os mesmos temas: o futuro, o desconhecido, a inteligência artificial, a exploração espacial, as mutações genéticas, os conflitos sociais em mundos distantes (ou não tão distantes assim).
Essa evolução acompanha a jornada da humanidade rumo às estrelas — e ao interior da própria matéria. O século XX foi palco de descobertas que pareciam saídas da ficção: a energia atômica, os primeiros voos orbitais, a chegada à Lua, os ônibus espaciais. As sondas Voyager, lançadas na década de 1970, ainda hoje enviam dados — e são as obras humanas mais distantes da Terra.
Telescópios como o Hubble e, mais recentemente, o James Webb, abriram definitivamente os olhos da humanidade para um cosmos em expansão.
A Ciência Alcança a Ficção
Se antes imaginávamos manipular a vida, agora o fazemos. Quando H. G. Wells escreveu sobre manipulação genética, tratava-se de uma especulação audaciosa. Mas a clonagem da ovelha Dolly, em 1996, mostrou que a ciência havia alcançado o que antes era apenas ficção. A engenharia genética, a biotecnologia e a inteligência artificial estão no centro dos debates contemporâneos — e continuam a alimentar novas narrativas.
Essa especulação científica inspirou obras como Jurassic Park, que se transformou em uma das maiores franquias da ficção científica. Hoje, a ciência tenta trazer de volta à vida animais extintos, como o mamute-lanoso ou o lobo-da-Tasmânia, com avanços reais nesse sentido. Se a ciência ultrapassar a ficção, o que mais poderemos restaurar? Civilizações? Ecossistemas? Espécies inteiras? Fica a especulação — que, como sempre, será combustível para novas histórias.
Século XXI: A Imaginação Torna-se Urgente
No século XXI, a ficção científica não apenas continua relevante: ela se torna urgente. Autores contemporâneos como Liu Cixin (O Problema dos Três Corpos), Ted Chiang (História da Sua Vida / Story of Your Life), Kim Stanley Robinson (Nova York 2140), e Ann Leckie (Justiça Ancilar / Ancillary Justice) exploram as fronteiras da consciência, da ecologia, da inteligência artificial e das estruturas sociais em futuros próximos ou distantes.
Ao mesmo tempo, obras como Black Mirror, Devs, Ex Machina, The Peripheral e tantas outras nos colocam diante de dilemas éticos provocados pelas tecnologias emergentes.
Do Universo Mecânico à Relatividade do Tempo
Até algumas décadas atrás, o modelo atômico de Bohr ainda orientava grande parte do pensamento científico e inspirava inúmeras obras de ficção. Os avanços da física quântica não apenas trouxeram novas explicações, como também abriram um universo de novas perguntas sobre a natureza da realidade.
A ficção científica acompanhou essa mudança. Em O Problema dos Três Corpos, Liu Cixin imaginou o sófon, um supercomputador do tamanho de um próton. Em Interestelar (2014), especula-se sobre buracos negros, dilatação do tempo e realidades multidimensionais, integrando ciência de ponta à narrativa.
Antes de Einstein, a visão predominante era mecanicista e linear, moldada pelas leis de Newton. O cosmos funcionava como uma grande máquina previsível, como um relógio. Obras como Da Terra à Lua (1865), de Jules Verne, exemplificam esse espírito.
Com a Teoria da Relatividade, de Einstein, tudo mudou: o tempo passou a depender da velocidade e da gravidade, e o espaço revelou-se flexível. O universo tornou-se um campo dinâmico de possibilidades, onde o observador influencia o observado.
A Relatividade no Cinema e na Literatura
Narrativas que envolvem dilatação temporal ganham nova força. Em Planeta dos Macacos (1968), baseado no romance de Pierre Boulle, o protagonista descobre estar na Terra do futuro — reviravolta que só faz sentido com base nos conceitos relativísticos.
Em Interestelar, ao visitar um planeta próximo de um buraco negro, os personagens vivem horas que equivalem a décadas na Terra. O drama humano é moldado por um fenômeno físico: o tempo que separa pais e filhos não é emocional, mas gravitacional.
Contrastando com isso, temos universos como Star Wars, onde a física é regida mais pela fantasia. Naves viajam à velocidade da luz como quem salta entre cidades, e o espaço é apenas um palco para batalhas épicas — uma ficção científica mitológica, onde o espaço é cenário, não enigma.
Já em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick oferecem uma visão cósmica influenciada pela ciência, evocando a insignificância do tempo humano diante do tempo universal.
Da Máquina que Sente ao Homem que Programa
A inteligência artificial também reflete essa transição. HAL 9000, de 2001, pensa em escalas de tempo e lógica distintas das humanas. Em Contato (1997), baseado em Carl Sagan, a viagem da protagonista dura segundos na Terra, mas horas em sua experiência — mais uma metáfora para o desencontro entre a experiência subjetiva e a realidade objetiva.
A peça R.U.R. (Rossum’s Universal Robots), de Karel Čapek (1920), foi a primeira a usar a palavra “robô” e a explorar o temor de que máquinas pudessem se voltar contra seus criadores.
Em Star Trek, o androide Data deseja pertencimento. Na saga de Asimov, o robô Daneel Olivaw cria a Lei Zero da Robótica e intervém no destino humano. Já em Perdidos no Espaço (2018) e na série Perry Rhodan, robôs alienígenas aparecem como ameaça à vida orgânica.
Hoje, robôs andam, correm, falam, criam imagens, compõem músicas e escrevem textos. As fronteiras entre homem e máquina estão se dissolvendo.
Quando o Futuro Chega Antes: Profecias da Ficção Científica
A ficção científica tem o poder de antecipar o que a ciência um dia tornará possível. Muitas ideias que surgiram nas páginas de livros ou nas telas do cinema pareciam, à época, meros devaneios — mas hoje são parte da realidade cotidiana.
Um exemplo clássico vem dos quadrinhos: Dick Tracy, personagem criado em 1931 por Chester Gould, usava um relógio de pulso com comunicador embutido. Na época, era pura ficção. Hoje, usamos smartwatches que não apenas fazem ligações, mas monitoram sinais vitais, enviam mensagens, tocam música, pagam contas e controlam dispositivos conectados.
As videochamadas, tão comuns hoje em smartphones, tablets e notebooks, foram imaginadas em diversas obras ao longo do século XX. Filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) já mostravam conversas por vídeo entre a Terra e a estação espacial, décadas antes da popularização da internet. Na literatura, autores como Arthur C. Clarke e Isaac Asimov imaginaram sistemas de comunicação global, redes de computadores e máquinas que interagiriam com os humanos de forma fluida — algo que hoje reconhecemos na forma da internet e das inteligências artificiais generativas.
O raio laser, por exemplo, apareceu como uma arma em muitas histórias de ficção científica, mas hoje seu uso está disseminado em áreas como medicina, engenharia, cirurgias oftalmológicas, armazenamento e leitura de dados e até mesmo em estúdios de gravação musical. O que nasceu como uma luz misteriosa nas histórias futuristas tornou-se uma tecnologia essencial.
Os computadores — que em muitas obras do século XX eram gigantes, conscientes e capazes de tomar decisões complexas — tornaram-se hoje pequenos, portáteis, integrados a celulares e assistentes de voz. Eles organizam nossas vidas, fazem cálculos complexos, traduzem línguas em tempo real, analisam imagens, orientam diagnósticos médicos e interagem conosco como se tivessem personalidade.
E os robôs? Nas histórias de Asimov, os robôs humanoides só ganhariam autonomia e inteligência sofisticada em um futuro distante, talvez milênios à frente. No entanto, hoje já vemos robôs andróides com feições humanas, capazes de se locomover, conversar, responder com naturalidade e até demonstrar expressões faciais. Empresas como a Boston Dynamics, Hanson Robotics, Tesla e outras já desenvolveram robôs com habilidades impressionantes — ainda limitados em certos aspectos, mas muito mais avançados do que se imaginava para o início do século XXI.
Mesmo as interfaces cérebro-máquina, que parecem saídas de Neuromancer (1984), de William Gibson, estão em desenvolvimento com iniciativas como o Neuralink, de Elon Musk. Implantes neurais que permitem interação direta entre o cérebro humano e sistemas eletrônicos são cada vez mais uma realidade científica, e não apenas literária.
A ficção científica, portanto, não apenas acompanha os avanços — ela os inspira. Muitas inovações nasceram da semente plantada por escritores, roteiristas, ilustradores e visionários. Ao imaginar futuros, eles ajudaram a construir o nosso presente.
Conclusão: Ciência e Ficção, Irmãs do Espanto
Mais do que nunca, a ficção científica é uma ferramenta para pensarmos o mundo. Ela antecipa discussões, alerta sobre riscos, propõe alternativas — e continua sendo uma forma de encantamento, como aquele primeiro olhar do humano primitivo para o céu estrelado.
A ficção científica nasce da mesma inquietação que move a ciência. Ambas querem entender o universo e o lugar da humanidade nele. Ambas querem ultrapassar fronteiras. Ambas se alimentam do espanto. E ambas são, no fim das contas, grandes histórias que contamos para tentar entender quem somos — e o que podemos ser.
Assista ao vídeo sobre esse mesmo artigo, que está no Youtube. Aproveite e se inscreva no canal, acione as notificações, curta o vídeo e deixe o seu comentário.
Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.