Away: Uma Odisseia Humana Em Marte
Uma série pouco comentada e muito injustiçada de ficção científica. Talvez porque não haja aliens predadores, batalhas espaciais ou um vilão com o lado sombrio da força. Away merece ser assistida pelo que ela é.
Paulo Bocca Nunes
Lançada em 2020 pela Netflix, Away é uma série de ficção científica que apostou em um caminho raro no gênero: explorar as complexidades da alma humana em meio à vastidão silenciosa do espaço. Criada por Andrew Hinderaker, a série é estrelada por Hilary Swank e acompanha uma missão internacional rumo a Marte. Mas não se trata apenas de uma viagem interestelar — é, acima de tudo, uma jornada íntima pelos dilemas, culpas e afetos que os astronautas carregam consigo. E talvez tenha sido justamente essa sensibilidade que a tornou uma obra preciosa, porém esquecida.
Produção, Direção e Fotografia: Um Esmero Técnico Admirável
Away impressiona pela qualidade da sua produção. Mesmo com apenas uma temporada, a série conta com um alto padrão técnico que não deixa a desejar diante de produções consagradas do gênero.
A direção, que conta com nomes como Jessica Goldberg e Ed Zwick, se destaca por equilibrar a grandiosidade do espaço com o intimismo das cenas humanas. O ritmo narrativo é maduro, contemplativo, sem pressa de entregar reviravoltas baratas. Cada plano parece cuidadosamente pensado para destacar o isolamento e a fragilidade dos personagens — inclusive em gravidade zero.
A fotografia é um dos elementos mais marcantes da série. Cenas da nave navegando pela escuridão cósmica contrastam com os tons cálidos e terrosos das lembranças na Terra. A paleta de cores acompanha os estados emocionais dos personagens, contribuindo para a imersão dramática. Em momentos-chave, o silêncio e o vazio do espaço tornam-se tão opressivos quanto os próprios conflitos internos da tripulação.
Roteiro e Trama: O Espaço como Espelho da Condição Humana
Diferente de obras que usam a ficção científica para explorar tecnologia ou grandes ameaças externas, Away aposta no drama humano. O roteiro é centrado nos conflitos íntimos de cada membro da tripulação, revelando aos poucos seus passados, segredos e dilemas morais.
Emma Green (Hilary Swank), a comandante americana, é o centro emocional da série. Ela precisa liderar uma missão de risco a milhões de quilômetros da Terra enquanto lida com a dor de estar longe do marido, recém-acidentado e em cadeira de rodas, e da filha adolescente, que começa a experimentar os desafios da maturidade sozinha. Além disso, pela pressão psicológica da missão, ela também passa a enfrentar crises de confiabilidade de alguns membros da tripulação.
Lu Wang, cientista chinesa, casada com um filho pequeno, mas vive um conflito profundo ao deixar para trás uma relação amorosa extraconjugal com outra mulher — segredo que carrega com culpa e medo, refletindo pressões sociais e culturais. Misha Popov, o engenheiro russo, é talvez o personagem mais emocionalmente impactante: pai ausente, enfrenta o desprezo da filha e um problema de saúde grave que ameaça a missão.
Cada personagem acrescenta uma camada à narrativa: Kwesi, o botânico ganês-britânico, traz o contraponto espiritual; Ram Arya, o médico indiano, enfrenta o vazio existencial da solidão; e todos, juntos, constroem um mosaico que representa a humanidade em sua forma mais vulnerável.
A trama funciona como uma metáfora: a distância de Marte é também a distância entre as pessoas, os afetos e os passados que nunca deixamos de carregar..
O Cancelamento: Um Corte Prematuro na Jornada
Apesar da qualidade evidente, Away foi cancelada após sua primeira temporada. O principal motivo apontado foi o alto custo de produção aliado a números de audiência considerados insatisfatórios pela Netflix. A série exigia investimentos técnicos significativos, especialmente com efeitos visuais, simulações de gravidade zero e construção de cenários complexos que representassem com realismo o interior de uma nave em missão interplanetária.
Mas reduzir a decisão apenas ao fator financeiro seria uma análise superficial. Existe uma questão mais profunda por trás do cancelamento de Away — um reflexo direto da lógica que hoje rege as plataformas de streaming. Séries como esta, que apostam na construção lenta de personagens, em dilemas humanos, introspectivos e muitas vezes filosóficos, não se encaixam bem nas métricas de sucesso imediato que movem os algoritmos.
O mercado atual prioriza resultados rápidos: número de visualizações nas primeiras 48 horas, porcentagem de episódios assistidos por sessão, taxa de conclusão de temporada na primeira semana de lançamento… E diante desse cenário, obras que exigem do público um envolvimento emocional mais paciente acabam ficando para trás.
Away não oferecia ação explosiva, nem mistérios de fácil digestão. Sua proposta era justamente o oposto: um drama psicológico e emocional ambientado no espaço, com foco em temas como saudade, culpa, impotência diante da distância, e as fragilidades humanas expostas a cada decisão.
Além disso, a crítica especializada também não soube, ou talvez não quis, valorizar o que a série tinha de mais precioso: sua densidade emocional. Muitos veículos de mídia ignoraram ou passaram superficialmente pelas camadas mais profundas da narrativa. Não houve tempo, nem interesse, em permitir que Away conquistasse o seu público de forma orgânica.
Por fim, é preciso reconhecer: o próprio público de streaming, acostumado ao consumo acelerado de conteúdos, também carrega sua parcela de responsabilidade. Em uma época em que se troca de série ao menor sinal de tédio, narrativas que pedem mais reflexão e menos pressa dificilmente encontram espaço.E assim, Away tornou-se mais uma vítima da lógica do entretenimento rápido: uma série tecnicamente impecável, emocionalmente potente, mas engolida pela ansiedade da indústria e da audiência.
Uma Série que Merece ser Redescoberta
Away foi, sem dúvida, uma experiência rara dentro da ficção científica contemporânea. Uma série que ousou colocar o ser humano — com todas as suas falhas, dilemas e vulnerabilidades — no centro de uma narrativa espacial. Enquanto tantas produções apostam em efeitos pirotécnicos e reviravoltas de roteiro, Away escolheu a introspecção, o silêncio e o peso emocional das escolhas.
Seu cancelamento precoce não apaga o valor da obra. Pelo contrário: reforça o quanto produções com mais densidade e menos apelo comercial imediato têm encontrado cada vez mais dificuldade para sobreviver em um mercado dominado por algoritmos e decisões baseadas em métricas de curto prazo.
Ainda assim, Away permanece disponível. Uma joia silenciosa, escondida no catálogo da Netflix, esperando por espectadores dispostos a desacelerar, a sentir e a refletir. Uma série que não nos oferece respostas fáceis, mas que nos lembra de uma verdade simples e poderosa: não importa a distância percorrida… sempre carregaremos a Terra dentro de nós.
Se você ainda não assistiu, dê uma chance. Não apenas pela ficção científica… mas pela experiência humana que ela representa.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.
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