Foundation: Qual o Segredo de Hari Seldon?
A terceira temporada de Foundation traz um lado sombrio do criador da psicohistória.
Tudo pode acontecer na terceira temporada de Foundation, mas o que mais pode causar impacto é o plano de Hari Seldon, ou o novo plano depois do surgimento do Mulo. Haverá sacrifícios inesperados?
Paulo Bocca Nunes
A série Fundação, da Apple TV+, tem oferecido aos fãs de ficção científica não apenas uma adaptação ambiciosa da obra de Asimov, mas também uma série de reinterpretações ousadas sobre personagens, eventos e conceitos fundamentais. Entre eles, nenhum é tão intrigante quanto o próprio Hari Seldon. Afinal, ele está realmente vivo? Ou é outra coisa?
A resposta não é simples — e talvez esse seja justamente o ponto. A “volta” de Seldon à carne e osso, sua relação com a enigmática Kalle, as crises anunciadas e o mistério em torno da nave Invictus indicam que estamos diante de um novo patamar narrativo. A pergunta essencial já não é apenas quem é Hari Seldon, mas o que ele ainda está escondendo — e por quê.
A MORTE E O RESSURGIMENTO
Na primeira temporada, Hari Seldon é assassinado a bordo da nave Deliverance enquanto ruma para Terminus. O autor do crime é Raych Foss, seu filho adotivo, em um ato previamente planejado como parte de uma complexa estratégia para garantir o sucesso da Fundação. Seu corpo é lançado ao espaço e, mais tarde, sua consciência integra o misterioso Vault (Cofre) em Terminus. Cópias digitais de Hari passam a habitar tanto o Primeiro Radiante quanto o Vault, servindo como guias virtuais do plano psicohistórico.
Uma dessas cópias é acessada por Gaal Dornick. Após testemunhar a morte de Seldon, Raych coloca Gaal em uma cápsula de criogenia e a lança ao espaço. Antes disso, entrega a ela a mesma arma usada no assassinato. Após mais de trinta anos em deriva, Gaal é resgatada por uma nave automatizada. Usando o punhal, ela consegue abrir a entrada da nave e lá encontra uma versão digital de Hari Seldon, que demonstra surpresa ao vê-la — esperava por Raych.
Os diálogos entre os dois são intensos. Gaal percebe que o plano de Seldon carrega mais mistérios do que aparentava: não se trata apenas de cálculos e previsões, mas de camadas ocultas e decisões não reveladas. Frustrada pela falta de respostas, ela decide se afastar de Seldon e retoma a mesma cápsula criogênica, viajando para seu planeta natal, Synnax. Ao chegar — mais de 150 anos depois —, encontra Salvor Hardin, que traz consigo o Primeiro Radiante. Ao perceberem que os rumos da psicohistória estão se desviando do plano original, as duas decidem intervir para tentar restaurar o equilíbrio.
A reviravolta ocorre na segunda temporada. Gaal, Salvor e Seldon vão até o planeta abandonado Oona, onde a consciência digital de Hari é conduzida por Kalle até uma caverna. Lá, algo extraordinário acontece. Ao sair, Hari está novamente em um corpo físico. Ele próprio não entende como isso foi possível, mas a presença de Kalle — uma entidade que desafia qualquer definição convencional — sugere o uso de uma tecnologia muito além da compreensão humana.
O MISTÉRIO QUE ENVOLVE SELDON
No final da segunda temporada, Seldon e Dornick foram colocados em sono criogênico para acordarem a cada ano e, dessa forma, passarem algumas semanas acordados ensinando os habitantes de Ignis sobre psicohistória e usar os seus poderes mentais para enfrentarem no futuro O Mulo. Esse último baseado nos sonhos de Dornick.
No primeiro episódio da terceira temporada mostra os dois acordando um ano depois e constatam, com o uso do Primeiro Radiante, que o rumo traçado pela psicohistória está fora de curso. O Mulo surgirá dali a cinquenta anos, mas o tempo é curto para restabelecer o curso da psicohistória.
Para colocar o plano no rumo que havia sido traçado, alguém precisa ficar acordado para refazer os cálculos, controlar e refazer os modelos, caso contrário tudo estará perdido e o plano não irá se realizar. Seldon convence Dornick a entrar em sono criogênico e ele permanece acordado para calcular tudo. Seu argumento é que ela deve ser preservada, pois é a única que pode enfrentar o Mulo. Seldon diz a Dornick que os dois se verão dali a um ano, mas ele mente e ela acorda 148 anos depois.
Dornick percebe que tudo está diferente. Todos que conhecia estão mortos — exceto Seldon, agora muito mais velho e visivelmente enfraquecido. Depois de revelar à Dornick que ela mudou o curso do plano pelo fato dela ter ficado viva, ao invés de ter morrido séculos atrás em Terminus. No entanto, ele afirma que isso pode não ser obra do acaso, pois de alguma forma ela recolocou tudo no lugar.
Nesse diálogo, Seldon revela duas coisas:
- Ao ajustar os modelos matemáticos, ele pode ver as oito crises que a Fundação irá enfrentar, seus dados, suas ideias e segredos.
- Na projeção do Primeiro Radiante, aparece a nave Invictus e Seldon diz: “Se o Mulo for derrotado, tudo vai ficar guardado ali.”
Essas revelações são muito intrigantes. Primeiro, o surgimento de oito crises, algo que nunca foi revelado nos livros de Asimov. Isso pode significar que as palavras dos criadores da série já haviam dito: oito temporadas para contar a história completa.
A outra revelação é sobre a nave Invictus, também conhecida como Shining Destiny. Ela foi destruída no final da segunda temporada de “Foundation”. A destruição ocorre quando ela colide com outra nave imperial durante uma rebelião orquestrada pelos Espaciais, que foram manipulados pelo Império.
A cena final da temporada mostra Riose e Mallow a bordo da Shining Destiny, que é destruída após a ativação de um dispositivo que causa colisões entre as naves imperiais. O dispositivo também desativa as cápsulas de salvamento, levando à morte de Riose, Mallow e sua tripulação. Não se sabe, portanto, como a Invictus irá surgir, nem mesmo o que será guardado lá.
No final da sequência, Seldon diz, não de forma clara, que está no fim, mas os dois irão se ver no dia seguinte. Seldon vai para seu aposento e lá ele encontra Kalle, a mesma que ele encontrou no planeta Oona. Aqui, aumenta o mistério em torno de Seldon, o plano e o que ele reservou à Dornick sem ter lhe revelado.
KALLE E A FRASE QUE MUDA TUDO
Na segunda temporada, Seldon vai para Oona com Salvor Hardin e Gaal Dornick. Lá, eles encontram Kalle, a matemática cujo trabalho é crucial para Gaal Dornick resolver a Conjectura de Abraxas, o que a coloca no caminho para encontrar Hari Seldon.
Kalle leva a forma digital de Seldon do Primeiro Radiante a uma caverna, deixando Dornick do lado de fora. O que ocorre dentro da caverna não se sabe, mas deixa Hari com um corpo totalmente humano mais uma vez. Ele é resgatado por Gaal e Salvor Hardin quando sua presença é detectada pelas máquinas de mineração autônomas que mataram a população do planeta.
Nessa terceira temporada, na sequência do diálogo entre Seldon e Dornick, ele entra em seus aposentos e encontra Kalle. Seldon lhe pede que o leve para Oona, pois ele precisa de mais um pouco de tempo, ou seja, ele quer viver mais tempo, ter outro corpo ou pelo menos um corpo mais saudável. Ela responde que o corpo dele já teve o seu tempo e que ele já fez o que pode com o que teve. Ela abre um portal e os dois partem. Enquanto atravessam o portal, há um diálogo muito intrigante, mas deve ser analisado por três aspectos:
SELDON (em inglês): “Salvor said… She said someone wanted me to have skin in the game. Why?”
KALLE: “Because we can’t.”
Essa frase, em sua versão original, carrega camadas de significado. “Skin in the game” é uma expressão idiomática que significa estar envolvido de verdade, correndo riscos reais. A resposta de Kalle — “Porque nós não podemos” — sugere que ela, e talvez os que estão com ela, não têm a capacidade de intervir diretamente no mundo físico. Seldon foi trazido de volta não por necessidade emocional, mas porque alguém precisava ter atuação real no plano. Ser um instrumento. Um executor. Era preciso estar pessoalmente envolvido, correr risco real, não ser apenas espectador.
A resposta de Kalle (“Because we can’t”) Sugere uma incapacidade fundamental dela e os seus: não podem intervir diretamente no mundo físico ou real.
Por outro aspecto, na dublagem em português, a fala de Seldon foi modificada para “A Salvor disse que talvez me quisessem com mais carne e osso”, o que dilui o sentido original, desviando da ideia de atuação real para a mera presença corporal.
Por sua vez, nas legendas, a fala de Seldon é: “A Salvor disse que talvez alguém queria que eu sentisse tudo na pele”. Isso fica muito próximo do original. Ao dizer “sentir na pele” retoma a expressão idiomática válida em português, mantendo o sentido de envolvimento e risco pessoal.
As respostas de Kalle se mantém, mas podem modificar o sentido do que diz Seldon e trazendo, por conseguinte, uma grande ambiguidade ou um sentido que guarda muito mais mistério e intriga. Kalle, portanto, se torna a figura mais enigmática da série. Tudo indica que ela não é humana, ou pelo menos não uma humana comum. A frase final — “Because we can’t” — indica limitação. Mas que tipo de limitação?
- Corpórea? (Ela não possui corpo físico);
- Temporal? (Ela habita outro tipo de existência);
- Tecnológica? (É uma entidade digital, IA ou consciência transferida?).
Isso conecta diretamente à ideia de Seldon precisar ter “skin in the game” — ele precisa voltar a ter atuação real no mundo físico para afetar os rumos da história. Kalle, ou os “dela”, não podem fazer isso diretamente.
O mistério, no entanto, não para aqui.
O QUE HARI SELDON REALMENTE QUER?
Mas se Seldon já teve seu “tempo” e que seu corpo já fez tudo o que tinha que fazer. Ela diz que ter aquele corpo foi a sua dádiva. Como ela mesma disse, por que ele quer mais tempo? O que ele ainda quer fazer?
Sabemos que durante o longo período em que Gaal esteve em sono criogênico, Hari permaneceu acordado. Refinou modelos, ajustou dados, presenciou o nascimento de uma nova Fundação, e, sobretudo, viu as oito grandes crises que ainda estão por vir — algo inédito até mesmo nos livros de Asimov.
A referência à nave Invictus é ainda mais misteriosa. Hari revela a Gaal que, se o Mulo for derrotado, “tudo será guardado ali”. Mas há um problema: a Invictus foi destruída na segunda temporada. Teria sido reconstruída em segredo? Salva por manipulação temporal? Ou será que Seldon guarda uma réplica — física ou digital — com segredos fundamentais para a reconstrução da civilização?
O tempo que ele passou sozinho pode ter sido usado para algo maior do que simplesmente atualizar fórmulas. Seldon pode ter criado um repositório de ideias, tecnologias, estratégias e até consciência, armazenadas na Invictus ou em outro ponto seguro, esperando a hora certa para emergir.
Para completar o mistério em torno de Seldon, na mesma sequência do diálogo entre ele e Kalle, ela diz: “Você mentiu para ela”. E ele responde: “Eu não consegui olhar nos olhos dela”. O que isso, na verdade, significa? O tempo que ele usou para refinar os cálculos levou em conta o sacrifício de Dornick?
No final da segunda temporada, ela acusou Seldon de usar as pessoas e não se importar com ela, apenas com o seu plano. Ele sempre deixou claro que o plano era importante e que sacrifícios seriam necessários. Para eliminar o Mulo, seria necessário o sacrifício de Dornick? Ou então haveria uma segunda versão de Dornick para ser usada na luta contra o Mulo e, por isso, ele teria que ir mais uma vez ao planeta Oona?
Seldon está se constituindo em várias camadas, amplificando a complexidade do personagem.
UMA NOVA GUERRA, UMA NOVA FUNDAÇÃO
A jornada de Seldon e Dornick não é mais apenas sobre prever o futuro, mas controlá-lo, enfrentar diretamente o caos representado pelo Mulo. Gaal é a única que pode detê-lo — e Seldon sabe disso. Por isso mente: diz que ela acordará em um ano, mas a envia para o futuro, 148 anos depois, para que ela atue no momento exato da crise.
Tudo indica que ele está preparando um novo ciclo de influência. Seu objetivo pode não ser mais apenas garantir a sobrevivência da Fundação, mas consolidar um novo paradigma histórico, reescrevendo o futuro com ferramentas mais diretas.
CONCLUSÃO: SELDON É MAIS DO QUE UM HOMEM
Hari Seldon, neste ponto da história, já não pode ser entendido apenas como um cientista ou mentor. Ele é um agente que transita entre o físico e o digital, entre o presente e o futuro, entre o humano e o pós-humano. Sua reencarnação lembra arquétipos religiosos — Cristo, Krishna — mas sua função é científica, pragmática, quase inevitável.
A dúvida não é se ele está vivo, mas qual é sua verdadeira natureza agora — e até onde ele está disposto a ir para garantir que a história siga o caminho que ele acredita ser o certo.A terceira temporada de Fundação promete mergulhar ainda mais fundo nesses questionamentos. A Invictus, as oito crises, a natureza de Kalle e os planos secretos de Seldon são peças de um quebra-cabeça maior — talvez mais complexo do que a própria psicohistória.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.