Imperdoável é um resumão da minissérie Unforgiven?
O filme estrelado por Sandra Bullock tentou fazer um estudo de um personagem saído de um longo tempo pagando por seu crime em uma penitenciária e depois ser reintroduzido na sociedade, mas carregando consigo uma eterna condenação. A tentativa pode ter sido boa. Ou poderia…
Por Paulo Bocca Nunes
O novo filme de Sandra Bullock, disponível na Netflix desde o final de 2021 (Imperdoável) tem sido um dos mais assistidos da plataforma. Desde que se noticiou que era baseado na minissérie britânica de mesmo nome (Unforgiven, em inglês) alguns críticos passaram a fazer comparações e até mesmo a chamar o filme de 2021 de “resumão” da minissérie. Por conta disso, houve muitas críticas negativas sobre o filme, salvando-se apenas a atuação de Bullock. Mas, será isso mesmo? Neste artigo, vamos analisar primeiro a minissérie e depois o filme. Vamos passar depois para uma análise comparativa entre os dois.
A MINISSÉRIE BRITÂNICA DE 2009
A prisão de onde sai Ruth parece ser uma prisão modelo. Uma van a espera para a levar até a agente de condicional, uma mulher madura e muito paciente. O apartamento em que ela fica é amplo para uma pessoa que antes estava presa em uma cela. Parece ter um conforto bastante razoável. A personagem traz consigo a tristeza de ter passado tantos anos na prisão, privada das notícias de sua irmã. Ruth escreveu cartas que nunca foram respondidas. Seus momentos de explosão se resumiram basicamente ao encontro com os pais adotivos de Lucy que negaram o direito de um encontro entre as duas. O grande confronto dela, na verdade, ficou por conta de um dos filhos de um dos policiais mortos. A forma como as duas se reencontram foi impactante e no final Lucy propõe uma ideia de um dia as duas ficarem juntas para passearem em um dia de verão.
Para conhecer a minissérie, ela está disponível no Youtube, em inglês e sem legendas em português. Você pode assistir clicando o primeiro AQUI; o segundo episódio AQUI e o terceiro AQUI.
O FILME DE 2021
O filme tem a direção de Nora Fingscheidt e, em linhas gerais, segue o mesmo roteiro da minissérie britânica, mas com significativas mudanças no roteiro, na tipologia dos personagens e na abordagem social e racial.
A mudança mais significativa em relação à minissérie diz respeito à personagem principal, Ruth Slater, interpretada por Sandra Bullock. Essa é pesada, amarga, carregada de todo o sofrimento causado pelo confinamento de 20 anos na prisão. Tudo é muito sombrio a começar pelo próprio rosto de Ruth. Sua aparência é de alguém que não quer cuidar de si mesma. Quer apenas rever a sua irmã, ter notícias dela. Ela tenta retomar a sua vida e fica hospedada em uma pensão barata. Consegue emprego numa empresa que trabalha com pescados. Ruth consegue um segundo emprego como marceneira, mas descarrega toda a sua raiva contida em seu trabalho depois do encontro frustrado com os pais adotivos de Katie Slater (Aisling Franciosi).
Os encontros com o seu agente de condicional mostram outra mudança na abordagem do tema do filme. Vincent Cross (Rob Morgan) é negro e todos os conselhos que ele dá a Ruth se referem ao preconceito que ela vai carregar para o resto de sua vida: uma assassina de policial. No caso de um agente negro traz o significado de ele sabe o que é o preconceito na sua forma mais elevada.
Ruth vai até a casa e acaba conhecendo o casal John (Vincent D’Onofrio), Liz (Viola Davis) e os dois filhos. Ele é um advogado. Liz não simpatiza muito com Ruth. No caso de Liz e John Ingram há outra mudança importante. Aqui temos um casamento multirracial e ela discute com o marido quando ele tenta ajuda-la, mesmo sabendo que Ruth é uma ex-detenta. Ela diz: “Se fosse com seus filhos negros, eles estariam mortos”. Essa referência não existe na minissérie britânica, mas na versão norte-americana faz um sentido muito forte. Isso não significa dizer que não há preconceito racial nos países britânicos, mas nos Estados Unidos ainda se constitui em um gravíssimo problema.
Fica claro que o filme busca fazer uma projeção da sociedade norte-americana ao colocar atores que formam uma representação racial e social da própria sociedade. No entanto, não explora isso de forma mais profunda. Tudo fica na superfície. Segue-se muito a personagem Ruth e isso não quer dizer que há uma profundidade de personagem, pois muitas vezes há uma câmera fechada em seu rosto, com suas expressões sofridas e sombrias, deixando o espectador na expectativa de refletir sobre o que se passa na cabeça dela.
Além desse preconceito da sociedade, Ruth ainda tem que enfrentar o ódio dos filhos do xerife assassinado, Steve e Keith Whelan. Para eles, Ruth não sofreu o bastante pelo crime que cometeu. Tanto a forma como houve o primeiro encontro entre um deles e o caso do sequestro de Emily Malcom, a filha legítima do casal Michael e Linda Malcom, foram diferentes na minissérie e no filme. Houve uma tentativa de levar uma vida normal e amorosa com um colega de trabalho, Blake (Jon Bernthal), mas a sua atitude depois que soube da verdadeira história de Ruth foi uma amostra de como a sociedade vê os seus ex-detentos.
De comum, houve os tons sombrios, mas no filme de 2021 tudo foi feito segundo o cinema norte-americano: carros de polícia, agentes super-armados, táticas de invasão de local de sequestro e tudo o que diz respeito a isso. Mas, foi apenas nesse momento que Ruth se fez reconhecer a sua irmã. O reencontro entre as duas foi melancólico se comparado à minissérie. Nada de troca de palavras. Nada sobre o futuro. Absolutamente nada. Tudo ficou apenas em um abraço e mais nada. Dá a impressão é que a diretora quer que o público dê o seu próprio final, que fique com o público a decisão de como será o futuro das duas irmãs.
Pela superficialidade dos personagens e do próprio roteiro, que mais pareceu um resumão ou algo do tipo “melhores momentos”, a minissérie se mostra mais consistente. Nessa, deu a sensação de falar sobre a mulher ex-carcerária dentro de um sistema social na Grã-Bretanha. Isso se reforça pelo aspecto da penitenciária de onde sai Ruth, na minissérie. Muito mais “humana” do que a representada na versão norte-americana.
OPINIÃO SOBRE O FILME
Sandra Bullock se constitui em todo o filme. Sua personagem é a que ganha destaque. Pode ter havido uma tentativa de fazer um estudo de uma personagem feminina e ex-detenta tentando se reintegrar à sociedade, mas isso ficou na superfície. Não houve profundidade, apesar da quase excelente atuação de Sandra Bullock.
O ponto fraco desse filme, em relação a ele mesmo e a minissérie britânica, é a superficialidade dos outros personagens, que mais parecem âncoras para a história de Ruth. Mesmo com um elenco muito qualificado, esse foi pouco aproveitado e seus personagens poderiam, ou deveriam, ir mais a fundo até mesmo pela concepção dada pela direção de usar atores que fossem representativos dentro de uma sociedade multirracial e problemática. Vincent, por exemplo, é um mero conselheiro em alguns momentos em que Ruth precisa colocar seu foco em algum trecho de sua nova estrada, mas sem tirar os olhos daqueles lados da estrada que contém o perigo do preconceito, ou do eterno julgamento, da sociedade. Essa sim, se constitui num juiz implacável e impiedoso.
A minissérie é de 2009 e o filme de 2021. A diferença de abordagem sobre o mesmo tema (uma mulher ex-detenta se reintegrando na sociedade) é muito evidente. O cinema norte-americano está tentando se adaptar à nova forma de fazer filmes a partir da consolidação das plataformas de streaming. Consumo rápido de produto audiovisual parece exigir novas tendências de como se deve contar, ou mostrar, uma história.
Sob esse aspecto, começamos a entender que a técnica atual de diminuir o tempo de filme, dar uma “dinâmica” pra contar (ou mostrar) o que é preciso saber sobre a história, sem haver uma necessidade de se fazer uma superprodução, se constitui em flashbacks como se fossem memórias diluídas dos personagens. O problema é que isso rompe com o ritmo da história, sendo muitas vezes em momentos que o melhor seria dar continuidade à ação dramática.
A produção norte-americana buscou dar as suas “cores” ao filme, inclusive mudando alguns nomes dos personagens para tirar aquele tipo de identidade “britânica”. Mas não foi eficiente em sua essência e em toda a sua problemática social. Se tivesse feito um filme com 2 horas de duração, como se fosse a minissérie, e tivesse abordado com mais profundidade a temática e seus personagens, ainda mais com o elenco que tem, teria dado um grande passo para receber muitas premiações.
O FILME DE 2021 É UM RESUMÃO DA MINISSÉRIE DE 2009?
De acordo com o que mostramos no texto acima, não se pode dizer que o filme seja um “resumão” da minissérie. O que se pode dizer é que a produção britânica totaliza 2h15 no total. Tirando as introduções e os créditos de cada episódio, talvez fique com uns 8 minutos a menos, no máximo. Se fosse o mesmo tempo de um filme não seria um exagero. Certamente, seriam feitas algumas poucas mudanças para passar o conteúdo para ser reproduzido nas telas de cinema. O filme de 2021 tem 1h54 no total o que pode ser um tempo bastante razoável para cinema.
O que se pode dizer é que as linguagens são diferentes. Uma produção para série de TV tem exigências muito diferentes para o cinema. Uma série de TV, por exemplo, depende dos investimentos do canal de TV, que por sua vez dependem dos patrocinadores que receberão espaços publicitários durante a temporada. Isso limita muito o orçamento para a produção. No caso das plataformas de streaming não há o espaço publicitário, mas o sucesso da série tem que corresponder ao número de assinantes da plataforma ou na captação de novos assinantes. Se for um sucesso, certamnete novos assinantes serão conquistados. O caso do cinema é muito diferente. Cada estúdio tem um orçamento diferente, dependendo dos investidores. Uma superprodução pode ser um sucesso de bilheteria, mas se não cair no gosto do público e da crítica, pode levar a um fracasso estrondoso.
Da mesma forma, fazer uma adaptação de um livro para a TV ou o cinema requer uma tarefa complicada, mas que responderá às necessidades de um ou outro veículo áudio-visual. Alguns filmes produzidos para cinema podem ser adquiridos (sob contrato por tempo determinado) por alguma plataforma de streaming. Foi o caso de Imperdoável, filme de 2021 com Sandra Bullock. Há uma grande diferença, nesse caso, para a minissérie. A atriz do filme é um apelo muito maior do que a da minissérie. Portanto, poderá haver um acréscimo de assinantes por esse motivo. Não significa dizer que a minissérie não fizesse sucesso numa plataforma como a da Netflix, mas o apelo que o nome de Sandra Bullock causa é muito mais expressivo.
Analisando as duas obras, podemos perceber que a produção norte-americana buscou levar a sua visão sobre uma ampla problemática sócio-racial. Para isso mudou não apenas a tipologia dos personagens como também alguns trechos do texto original da minissérie para que fizesse todo sentido na obra fílmica. O que prejudicou o filme foi a busca em seguir muito mais a personagem Ruth do que mostrar as outras partes de sua história, ou seja, foi um tanto superficial tudo o que se mostrou sobre a família do policial morto e como os dois filhos ainda lidam com o problema (isso ficou muito claro na minissérie), e também a família que adotou Katie. O filme tratou de mostrar como fica a cabeça de uma pessoa rejeitada pela sociedade, mesmo depois de ter pago a sua dívida com ela. Foi por esse motivo que a adaptação pra o filme mostrou Ruth com outro emprego e ocupando o seu tempo com aquilo que ela gostava: trabalhar com marcenaria, algo que na minissérie não consta. Logo depois da frustração com o encontro com os pais adotivos de Katie, Ruth destroi todo o seu trabalho numa fúria incontida.
A minissérie mostrou a trajetória de tentativa de reconciliação de Ruth com a sociedade, mostrando ela em festas, buscando se divertir e seguir uma vida normal. No filme, Ruth não parece disposta a abrir um sorriso. Ela é muito mais agressiva e arma todos os seus escudos contra a sociedade que ela não confia. A sua tentativa de confiança, morreu na atitude de Blake ao revelar o segredo de Ruth aos colegas de trabalho.
A frieza de Ruth é tão grande, a sua amargura tão intensa que isso justifica o final do filme em que há o reencontro entre as duas irmãs. Na minissérie, há uma lógica para aquele reencontro. No entanto, a personagem do filme não se parece com alguém que vá reagir de outra forma. Até mesmo por tudo o que ela passou no filme e como ela reagiu a tudo, não se pode exigir muita coisa dessa personagem. O que se pode esperar é que ela vai conseguir viver alguns momentos com a sua irmã, mas isso terá que seguir alguns procedimentos psicossociais com uma boa assistência.
Cada obra fílmica respondeu às necessidades de suas sociedades. Portanto, não se pode dizer que o filme de 2021 tenha sido um resumão, mas trouxe a público a sua visão de representação da sociedade norte-americana e como ela age sob determinadas circunstâncias.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.