Mãe / Androides: alguém chamou ISSO de ficção científica ou distopia?
Mãe x Androides começa com um título que deveria seguir alguma lógica no filme, mas fica a dúvida do verdadeiro motivo dessa disputa entre uma mulher e androides.
Por Paulo Bocca Nunes
OPINIÃO
O filme tem roteiro e direção de Mattson Tomlin. Sua carreira tem se baseado como roteirista, mas em 2020 ele escreveu o roteiro desse filme com a intenção de dirigir. Sendo seu primeiro trabalho como diretor, não me parece ter sido uma boa ideia. A tarefa de escrever e dirigir pode cair no problema de não se concentrar bem em uma ou a outra tarefa. Para começar, um filme de ficção científica requer efeitos especiais e isso exige bons recursos para a produção dar conta de tudo. Algumas coisas no filme parecem ter sido feitas (ou não) porque é exatamente a mesma pessoa que sabe o que vai ter condições técnicas e financeiras para ser feito. O CGI dos androides, por exemplo, não é dos melhores. Os efeitos de chroma key deram mais ou menor certo porque foi mais usado para mostrar a cidade de Boston ao fundo, meio destruída. Há muitos estúdios que tem as condições técnicas e de espaço para fazer algo como esse que aparece no filme. Só que ainda assim o filme ficou devendo nesse aspecto.
O roteiro tem buracos e inconsistências que fazem com que certas ações serem inverossímeis ou, o pior, serem incoerentes com o próprio roteiro. Um desses casos mais grotescos foi sabermos por um personagem que os androides são resistentes e depois, lá no terceiro ato, um tiro de revolver pode acabar com eles. Talvez o pior desse aspecto seja quase ao final, em que os androides atacam Boston e Georgia se constitui na grande “heroína”. Uma mulher que teve uma parto de cesariana há pouquíssimo tempo não faz absolutamente nada do que ela fez no filme. Mesmo que uma mãe faça de tudo para proteger o seu filho! Aliás, toda essa sequência é quase absurda! Simples assim!
Algumas cenas de ação prendem a atenção do espectador, como na perseguição no meio da floresta com Georgia e Sam fugindo de moto. Há momentos de tensão muito bons também. No entanto, na maioria das vezes tudo fica apenas na superfície. Os personagens são um grande exemplo disso. Chloe Grace Moretz tentou criar uma personagem consistente, mas caiu em algumas armadilhas dramáticas fáceis ao mostrar uma jovem estudante que fica grávida e está toda perdida com o seu namorado. No final do filme, a sua performance dramática, puxando para um pequeno dramalhão destoa demais do envolvimento de seu parceiro de cena, Algee. Esse, por sua vez, não conseguiu criar uma “quimica” com sua colega de cena. Se o roteiro não ajudou, pelo menos ele deveria fazer como Chloe: ele tentou salvar o roteiro dando o máximo de si.Mesmo que o seu personagem seja meio insonso, até para isso é preciso uma boa interpretação. O problema é que os dois foram colocados em cena sem a menor noção quem eram os seus personagens, ou melhor, sabiam muito superficialmente.
Em um filme não se conta: se mostra! Ao mostrar, o espectador conhece melhor o personagem do que ele ficar falando sobre si mesmo. Se nós, os espectadores, acompanhamos um personagem desde o início com um tipo de comportamento e vamos observando suas ações, podemos afirmar o que pode ser uma grande incoerência do personagem em uma ação na metade do filme. O espectador irá ter uma empatia com o personagem e vamos observando ele mudando, evoluindo dentro da própria história. Sob esse ponto de vista, o que aconteceu com Sam quando ele e Georgia estavam no acampamento militar antes de irem para Boston foi qualquer coisa de absurda! Sam foi desafiado por um soldado muito maior e mais forte e ele não poderia fazer o que fez. O que se viu do seu personagem não corresponde ao que ele fez. E ainda ficamos sabendo disso contado por outro personagem! Totalmente inconsistente, inverossímil e não convence nem que tenhamos que fazer um enorme esforço.
O filme passa a impressão de que o roteirista (que é também o diretor) pensa que ninguém vai reparar ou não vai se importar. Infelizmente, tratar o espectador de bobo não é uma atitude simpática para quem está no seu primeiro filme como diretor. Certa vez um diretor, que já faleceu há muitos anos, disse que, se algo estiver errado no terceiro ato de um filme, o problema está no primeiro ato. Exatamente esse o problema geral de Mãe x Androides. Desde o primeiro ato, o filme já se mostra inconsistente e frágil nos seus argumentos. Como se corrige isso? Primeiro, apresentando melhor os personagens principais (Georgia e Sam). Sabe-se muito pouco sobre eles, não se sabe se eles tem pontos fortes e como usá-los em uma necessidade ou numa situação difícil. Segundo, apresentar melhor a sociedade moderna com seus androides quase perfeitos e não ficar apenas numa amostra baseada na reunião de pessoas em uma festa. Todo vilão tem uma fraqueza e desde o início isso não fica evidente nem subentendido. Terceiro, mostrar o que pode vencer os androides, mesmo que seja por uma eventualidade remota, mas possível. Há várias maneiras de como isso pode ser feito. Todos esses aspectos precisam estar no primeiro ato. Outros podem estar presentes, contanto que estejam a serviço do roteiro e da história para fazer todo sentido no terceiro ato e, dessa forma, não haver a necessidade de ações totalmente descabidas ou a necessidade de um deus ex machina.
Não é mostrado ou explicado o que causou a revolta dos androides. Nem mesmo em uma breve sequência quase no final do terceiro ato, quando Georgia enfrenta um dos androides. Não se sabe se houve alguma sabotagem, se foi um hacker, ou um vírus que foi introduzido nas inteligências artificiais das máquinas. Simplesmente, aconteceu a pane e a revolta. Ficamos observando os personagens fugindo e em busca de um lugar seguro, mas não se sabe se em outras partes do mundo a situação está igual ou pior. Apenas se sabe que os dois querem ir para a Coreia, pois há o plano para refugiados. E ainda assim com algumas restrições que ficaram mais severas no final do filme. Exatamente isso que causa o dramalhão de Georgia e o vazio de Sam.
Não se sabe ao certo sobre o que o filme quer falar. Se o objetivo do filme é mostrar um perigo possível das inteligências artificias em robôs ou androides e esses se voltarem contra os humanos, isso deveria ter sido mais desenvolvido. Se é para mostrar a luta pela sobrevivência de Georgia e Sam dentro de uma sociedade desorganizada por conta de suas próprias ações sem medir as consequências e fazer disso um quadro que representasse toda a humanidade, faltou desenvolvimento de personagens.
O final do filme não causa espanto ou surpresa. Nem mesmo se observa uma mudança nos personagens, ou seja, não se sabe o que se espera deles dali para frente. Talvez o final tenha sido o mais coerente de tudo o que se assiste nesse filme. O que coube a cada um não representou muita coisa que fizesse desse filme uma grande obra. Toda a sequência que leva para o encerramento do filme é melancólico, demorado, arrastado, com flashes de imagens e música lenta para criar uma sensibilização no público. Se houvesse um melhor desenvolvimento da história no primeiro ato, essa sequência do final não seria necessária, pois tudo o que teria sido mostrado arrebataria o público.
O diretor me passa a impressão de que está fazendo alguma referência religiosa pelo fato de Georgia estar grávida e eles estarem buscando um lugar seguro para seu filho nascer. Uma reviravolta no segundo ato deu a sensação de que o bebê de Georgia é importante para os androides, mas… por quê? Não há nada que diga que a criança tenha alguma coisa que possa se constituir em perigo para os androides. Na sequência final, que poderia ser mostrado alguma coisa sobre um possível perigo para os androides, também nada aparece. Por que eu bato nessa tecla? Pelo visto, a gravidez de Georgia serviu apenas de um mote para mostrar dois personagens fugindo e mostrando as suas dificuldades para alcançar o seu objetivo. E também serviu para um drama bastante emotivo no final.
Mãe x Androides possui muito mais emotividade fácil do que consistência dramática que dê ao espectador uma experiência renovadora e reflexiva. Eu espero, sinceramente, que esse filme não prejudique a carreira de diretor de Mattson Tomlin. Da mesma forma, Chloe tem escolhido filmes um tanto questionáveis para mostrar o seu talento e esse é mais um daqueles. Felizmente, não há nada que possa servir de gancho para um segundo filme. Ou melhor… há sim, mas eu não creio que Mattson irá se arriscar de novo a um roteiro tão fraco.
Uma preocupação que tenho é quanto à classificação dos gêneros divulgados pela Netflix (ficção científica e distopia). Todas as plataformas de streaming possuem filmes com essas classificações. Uma boa parte dos catálogos trazem produções muito fracas, quando não são muito ruins. Filmes dessa envergadura precisam de cuidados de produção e finalização, como qualquer outro, mas apresentar uma sociedade distópica, mostrar um olhar visionário de um futuro que pode estar distante ou próximo e pode se realizar é uma tarefa importante e muito delicada. Também é recomendável que o roteirista tenha alguns conhecimentos científicos para se atrever a criar um roteiro de ficção científica. Isso evita não mostrar algumas coisas que foram ou por falta de conhecimento mínimo ou por falta de habilidade de escrever sobre o gênero de ficção científica.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.