O Mulo: A Grande Mudança em “Foundation”
O vilão mais complexo do universo de Asimov ameaça a Fundação.
Os dois primeiros episódios da terceira temporada trouxeram um Mulo mais devastador. Seldon e Dornick se esforçam para colocar o rumo da psicohistória no lugar. Mas, o tempo pode não ser favorável e tornar o que vier depois da terceira crise pode ser imprevisível e caótico.
Paulo Bocca Nunes
A figura do Mulo, uma das figuras mais icônicas, enigmáticas e poderosas da trilogia Fundação de Isaac Asimov, ressurge na terceira temporada da série da Apple TV+, mas tem gerado grande expectativa entre os fãs da série Fundação, especialmente após os eventos da segunda temporada e os primeiros episódios da terceira.
Introduzido originalmente no segundo livro da trilogia, Fundação e Império, o Mulo representa uma ameaça imprevisível ao Plano Seldon, capaz de alterar o curso da história galáctica com sua simples presença. O grande detalhe é que esse personagem surge na série com mudanças radicais. Da figura grotesca e manipuladora dos livros ao conquistador de presença ameaçadora da série, o Mulo continua a representar o maior desafio à Psicohistória de Hari Seldon — e talvez o seu completo colapso.
O MULO NOS LIVROS: UMA AMEAÇA DISFARÇADA
O que torna o personagem Mulo especialmente enigmático nos livros da série Fundação é o completo desconhecimento sobre suas origens. Na segunda metade de Fundação e Império, o capítulo intitulado “O Mulo” se inicia com uma citação da Enciclopédia Galáctica que já antecipa esse mistério:
“Ainda se sabe menos quanto ao ‘Mulo’ do que a respeito de qualquer outra personagem de igual importância para a história galáctica. Não se sabe qual era o verdadeiro nome; o início de sua vida é mera conjectura. Mesmo o período de sua maior nomeada é principalmente conhecido através dos olhos dos seus antagonistas e, principalmente, através dos olhos de uma jovem noiva…”
Essa jovem é Bayta Darell, descendente de uma proeminente família da Fundação, casada com Toran Mallow, também descendente — neste caso, de Hober Mallow, o grande mercador renegado. Ambos se tornam peças centrais na narrativa que gira em torno do surgimento do Mulo.
O planeta natal de Toran é Haven, um mundo de rochas com cidades subterrâneas. Ao visitar o planeta com sua esposa recém-casada, Bayta, Toran a apresenta ao pai, e a conversa logo revela a tensão política vigente. Bayta declara:
“Está prestes a verificar-se uma crise de Seldon… e que ela não se apresenta inteiramente de acordo com o plano de Seldon. É uma ruptura.”
Isso indica que os eventos se passam cerca de 300 anos após a fundação de Terminus, e que o surgimento do Mulo marca uma quebra não prevista nos cálculos da Psicohistória.
A crise, inicialmente, parece se concentrar no conflito entre a Fundação e os comerciantes renegados, mas logo se percebe que há algo muito maior em curso. O planeta Kalgan, um mundo famoso por seu luxo e hedonismo, é tomado silenciosamente por um personagem misterioso chamado O Mulo. Kalgan é descrito assim:
“Com a estrutura do gênero humano a oscilar, mantinha a sua integridade como forjador de prazer, comprador de ouro e vendedor de lazer.”
Quando Bayta e Toran visitam Kalgan, numa praia onde relaxam turistas, eles se deparam com um palhaço acrobático que sofre repressão de uma guarda local. Bayta e Toran intervêm, e uma estranha amizade se forma com o bufão, que se apresenta como Magnífico Giganticus. Ele é descrito como muito magro, de feições longas, nariz carnudo e olhos ansiosos. Foge do que diz ser a tirania do Mulo. A música tocada em seu instrumento — uma espécie de visi-sonor — possui um efeito quase hipnótico.
O que os leitores descobrirão muito mais adiante é que esse palhaço é, na verdade, o próprio Mulo disfarçado. Seu comportamento submisso, sua aparência ridícula e a constante expressão de medo são, na verdade, parte de sua camuflagem emocional. Seus poderes mentais lhe permitem manipular sentimentos, plantar adoração ou medo conforme seus objetivos, e mascarar sua presença até atingir seus alvos.
Esse subterfúgio é uma das grandes armas do Mulo nos livros: o anonimato e o disfarce. Ninguém sabe ao certo quem ele é ou onde está, o que lhe permite avançar pelas defesas políticas e militares de seus inimigos sem ser detectado. Isso contrasta fortemente com a abordagem da série de TV, onde o Mulo surge como uma presença física dominante, sádica e assumidamente poderosa desde o início.
ANTECEDENTES: DA RELIGIÃO AO COMÉRCIO
Para compreender melhor o contexto da ascensão do Mulo, é preciso revisitar o percurso histórico da Fundação até então. Após o domínio inicial por meio da religião tecnológica, a Fundação passa a expandir seu alcance via comércio interplanetário. Missionários são substituídos por comerciantes, como Hober Mallow, que estabelecem relações baseadas na dependência tecnológica. Quando os sistemas que compraram tecnologia da Fundação tentam se rebelar, descobrem que não conseguem manter ou reproduzir essa tecnologia sem assistência — o que leva à rendição.
Esse cenário político enfraquecido, marcado por crises anteriores e por um governo burocrático e ineficiente liderado por Indbur III, é o campo fértil para o surgimento de um personagem como o Mulo. Ele se aproveita da fragilidade institucional, do desencanto popular e da confiança cega nos cálculos da Psicohistória.
BAYTA: A PERSPICAZ PROTAGONISTA
Ao contrário de outros personagens que giram ao redor do Mulo, Bayta é quem se destaca como figura central e agente ativa da trama. Sua sensibilidade emocional e percepção aguçada a tornam capaz de desconfiar das intenções de Magnífico, embora mesmo ela demore a compreender a totalidade da ameaça que enfrentam. Sua relação com Toran, o encontro com Ebling Mis — um estudioso obcecado em decifrar a localização da Segunda Fundação — e o próprio convívio com Magnífico moldam o enredo com um equilíbrio entre tensão política, emoção e mistério.
Ao final, a revelação da verdadeira identidade do Mulo transforma completamente a narrativa, subvertendo as expectativas dos personagens e também do leitor.
A RELEITURA NA SÉRIE DA APPLE
A adaptação da Apple apresenta um Mulo que, à primeira vista, se distancia da caracterização literária, buscando não adaptar fielmente Asimov — ela interpreta, reconfigura e dramatiza para o formato audiovisual contemporâneo. Ao contrário do Mulo dos livros, que se escondia e manipulava silenciosamente, o Mulo da série se exibe como uma força inevitável — desafiando abertamente a Fundação, o Império e, talvez, o próprio destino. Em vez da figura deformada e disfarçada, temos um homem de aparência robusta, postura dominante, voz suave e olhar que intimida.
Na série, ele aparece como um ser cruel, sádico e calculista, com uma postura fria e distante. Sua introdução é marcada por uma sequência violenta, que deixa claro seu domínio mental sobre os outros — em especial, sobre Gaal Dornick.
Mas… será esse o verdadeiro Mulo? Há sutilezas e pistas.
Embora a série traga uma releitura visual e tonal do personagem, ela preserva elementos essenciais da mitologia original. O uso de manipulação emocional, a busca obsessiva por controle e a sensação de inevitabilidade em torno do personagem remetem ao impacto que o Mulo causa nos livros. Ele é apresentado como uma figura que desafia as probabilidades e as previsões da psico-história, tornando-se, talvez, o maior inimigo de Hari Seldon e do seu plano.
Outro ponto de destaque é a forma como o Mulo surge: em visões do futuro, como foi o caso do final da segunda temporada e nas visões de Gaal Dornick. Isso levanta questões sobre a cronologia dos eventos e o real papel de Gaal como potencial antagonista ou salvadora. A série parece construir um caminho mais complexo do que o previsto nos livros, utilizando a narrativa não linear e as visões premonitórias para gerar tensão e imprevisibilidade.
CONEXÕES COM A OBRA ORIGINAL: KALGAN, O DJ E O PALHAÇO
Para os leitores atentos, a série deixa pistas que parecem conectar-se diretamente com os detalhes da obra de Asimov — mas com sutis alterações. Em Fundação e Império, o planeta Kalgan é o palco onde Toran, descendente de Rober Mallow, e sua esposa, Bayta, conhecem um palhaço misterioso, que, mais tarde, se revela ser o próprio Mulo. Esse palhaço, aparentemente inofensivo, possui um aparelho musical com sons hipnóticos, que encantam e intrigam. Ele se infiltra na vida do casal e os acompanha em sua nave, usando-os como parte de sua estratégia para dominar o que restava do Império.
Na série da Apple, durante o terceiro episódio da terceira temporada, vemos algo que pode ser mais do que coincidência: em Kalgan, há uma boate ou clube noturno com um DJ cuja música tem efeitos quase hipnóticos sobre os frequentadores. O Mulo está na boate, observando tudo, e chega a afirmar que aquele é seu DJ favorito. Há algo familiar na postura e no visual do DJ, como se evocasse a figura do palhaço dos livros, não apenas por seu papel periférico mas pela influência que exerce naquele ambiente.
Nessa mesma boate estão Toran e Bayta. Ela parece atraída pela música do DJ e, junto com o parceiro, após uma confusão na boate, embarcam em sua nave junto com Han Pritcher, o capitão da Fundação que também faz parte do livro de Asimov. Todos eles levam o DJ.
Assim como no livro, temos um trio: o casal e uma figura carismática e enigmática que os acompanha em uma viagem — o que pode ser uma releitura da estratégia do Mulo original.
Seria esse DJ, de fato, o Mulo disfarçado? A fuga da boate foi planejada? Ou tudo não passa de um elaborado despiste narrativo? Estaria a série repetindo os passos da obra literária, mas com um novo arranjo, provocando o espectador com essas “coincidências”? Essas perguntas, sem resposta definitiva, alimentam teorias e debates — e elevam o grau de sofisticação da adaptação.
MUDANÇAS QUE ALTERAM O JOGO
Gaal Dornick agora possui habilidades mentais que a conectam ao Mulo. Foi ela quem o previu em uma visão do futuro e, segundo Hari Seldon, é a única capaz de enfrentá-lo. Para completar, no terceiro episódio vemos que ela tem um forte e poderoso aliado. Como ele irá ajudá-la a enfrentar o Muloi?
Demerzel, personagem secundária nos livros, torna-se uma figura central. Ao estudar o Primeiro Radiante por 150 anos, descobre que o plano de Seldon já não se sustenta. Ela, no entanto, não leva em conta a existência do Mulo. Por outro lado, ela é uma robô e não deve sofrer a influência do Mulo. Qual deverá ser sua função na luta contra o Mulo?
A Zona Central da Galáxia, antes sob domínio do Império, passa a ser cobiçada por múltiplos lados: Império, Fundação, Comerciantes Independentes — e o próprio Mulo.
O Primeiro Radiante, fonte do Plano Seldon, agora é um recurso em mãos de Demerzel, que não pode ser manipulada pelos poderes mentais do Mulo — criando um potencial novo eixo de conflito.
Bayta e Toran apresentam algumas diferenças para os livros, mas a importância desses dois personagens é fundamental. No livro, ela tem uma forte ligação com o Mulo, muito pela influência mental dele. Por outro lado, isso foi algo que o levou a um caminho contrário aos seus objetivos. Na série, isso está acontecendo com o palhaço. O que se pode esperar disso?
A psico-história desafiada: O Mulo representa a falha fundamental na teoria de Hari Seldon. A psico-história rejeita a ideia de que indivíduos moldam a história; ela é baseada em padrões de comportamento de grandes massas populacionais. Mas o Mulo, com sua habilidade de alterar a vontade das pessoas, introduz um “fator individual” com alcance coletivo. Ele prova que uma única anomalia pode mudar o destino de uma galáxia inteira.
Um elemento que reforça essa construção narrativa e a importância do Mulo na nova temporada está em uma fala crucial de Hari Seldon no segundo episódio. Ele e Gaal discutem o que está sendo revelado pelo Primeiro Radiante — dispositivo que projeta as previsões psico-históricas. Seldon afirma que a terceira crise da Fundação sempre foi um ponto decisivo, mas alerta: mesmo com a derrota do Mulo, a Fundação pode não estar preparada para o que virá em seguida.
Essa crise, portanto, não gira apenas em torno da figura do vilão, mas envolve também o preparo da Segunda Fundação e o equilíbrio entre razão e intuição. Seldon reconhece que o planeta Ignis, agora lar dos mentálicos, será fundamental nesse processo — e que, mesmo com o treinamento correto desses telepatas, será necessário ajustar os modelos psicohistóricos para que a linha do futuro possa ser retomada. Ele ressalta que a própria sobrevivência de Gaal Dornick, séculos após o que estava previsto, mudou profundamente o curso da história. Ainda assim, ele acredita que ela tem um papel decisivo tanto para derrotar o Mulo quanto para restaurar o caminho da psicohistória.
O QUE AINDA ESTÁ POR VIR?
O arco do Mulo está longe de ter um desfecho definitivo. Sua aparição na terceira temporada é apenas o começo. A presença de Gaal, a inquietação de Demerzel e a ameaça ao Império abrem espaço para uma quarta temporada densa, filosófica e repleta de dilemas morais. A pergunta permanece: como vencer um inimigo que pode fazer você amá-lo?
E mais: o Mulo da série, assim como nos livros, talvez não queira apenas poder — talvez queira aceitação, amor… ou, talvez, reescrever a galáxia inteira com suas próprias emoções.
Agora, se o Mulo seguirá o mesmo caminho da obra literária ou se a série tomará um rumo inédito, ainda não sabemos. Mas uma coisa é certa: ele já se estabeleceu como uma das figuras mais fascinantes e inquietantes da ficção científica contemporânea.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.
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