O Problema dos Três Corpos: Ciência, Tecnologia e Alienígenas
A série da Netflix introduz conceitos conhecidos da ciência, que foram explorados pela ficção científica, mas também há novos que vamos nos apropriando à medida que os episódios avançam.
INTRODUÇÃO
A ficção científica, desde suas origens, tem a capacidade única de combinar criatividade narrativa com plausibilidade científica. Hugo Gernsback, frequentemente chamado de pai da ficção científica moderna, foi um dos pioneiros desse gênero no início do século XX. Ele acreditava que as histórias de ficção científica deveriam se basear na ciência conhecida, explorando suas possibilidades e consequências de maneira verossímil. Essa interseção entre ciência e imaginação cativa leitores e espectadores há gerações, oferecendo um terreno fértil para especulação e inovação.
Um exemplo contemporâneo notável dessa abordagem é a trilogia “O Problema dos Três Corpos”, escrita pelo autor chinês Cixin Liu. Agora adaptada para a televisão pela Netflix, a série de livros não só incorpora conceitos científicos avançados, mas também desafia os limites do conhecimento atual. A obra traz ao público uma questão complexa e fascinante da física teórica: o problema dos três corpos. Este problema descreve a dificuldade de prever o movimento de três corpos celestes em interação gravitacional, algo que nunca havia sido explorado de forma tão profunda e intrigante na ficção científica até agora.
A adaptação televisiva mantém a essência dos livros, destacando a interconexão entre ciência e narrativa. Com uma trama envolvente e personagens bem desenvolvidos, a série não só entretém, mas também educa, despertando o interesse pelo pensamento científico e pela exploração do desconhecido. É um testemunho do poder da ficção científica em inspirar e desafiar nossa compreensão do universo.
Neste artigo, vamos explorar os aspectos científicos apresentados na série “O Problema dos Três Corpos”.
1. O PROBLEMA DOS TRÊS CORPOS
O “Problema dos Três Corpos”, vivenciado por Jack e Jin no jogo de realidade virtual do San-Ti, é baseado em um verdadeiro dilema científico, considerado insolúvel. Enquanto os movimentos de dois corpos sob a influência gravitacional mútua podem ser previstos pela comunidade científica, a introdução de um terceiro corpo torna essas interações praticamente impossíveis de prever a longo prazo. As variáveis dos três corpos e suas interações gravitacionais são extremamente complexas, dificultando qualquer previsão precisa.
Na série, o problema é retratado no cenário em que os Sen-Ti se encontram. No episódio 3, a cientista Jin percebe que o mundo dos Sen-Ti possui três sóis, e o movimento caótico do planeta em torno deste trio de estrelas torna impossível para os Sen-Ti prever quando surgirá uma Era Caótica ou Estável. A mudança imprevisível entre a segurança de uma Era Estável e o perigo de uma Era Caótica faz com que o progresso científico dos Sen-Ti seja muito mais lento que o da humanidade, devido à necessidade de reconstrução após cada Era Caótica.
Para esclarecer, uma Era Estável ocorre quando o planeta dos Sen-Ti orbita uma das três estrelas de forma relativamente previsível. Em contraste, uma Era Caótica ocorre quando o planeta é influenciado pela atração gravitacional das outras estrelas do sistema, resultando em um comportamento orbital imprevisível e perigoso.
2. O JOGO VR
Os headsets de realidade virtual prateados e brilhantes que aparecem ao longo da série podem parecer familiares para os jogadores do mundo real. A tecnologia imersiva retratada é essencialmente uma versão muito mais avançada dos dispositivos de jogo existentes atualmente. Na série, esses headsets de realidade virtual não apenas simulam visão e som, mas também envolvem todos os outros sentidos. Os jogadores podem cheirar, sentir e até “saborear” o ambiente artificial, tornando o jogo altamente imersivo e realista. No entanto, o jogo não é apenas uma forma de entretenimento.
Os Sen-Ti distribuem os headsets para os cientistas mais brilhantes da humanidade como uma ferramenta educacional, possivelmente na esperança de que possam ser salvos das Eras Caóticas. Cada headset é adaptado para um jogador específico, como evidenciado quando Jack tenta jogar o jogo de Jin no episódio 2 e é morto repentinamente no jogo. O jogo avança através de vários níveis, cada um com um objetivo enigmático e implícito para ajudar a prever a chegada de uma Era Caótica. No entanto, o verdadeiro objetivo do jogo é salvar a população do planeta, algo que foi descoberto por Ji Cheng.
Um mistério interessante é como os headsets chegam às mãos dos cientistas. Há várias teorias: eles podem ter sido enviados em uma caixa, como aconteceu com um dos Oxford Five; podem ter sido entregues por membros do culto aos Sen-Ti; ou ainda por intermédio de Tatiana Haas, uma devota fiel dos ensinamentos do bilionário Mike Evans, que mantém contato com os Sen-Ti.
Os personagens do jogo são todos humanos, embora a série confirme algumas vezes que os Sen-Ti não se parecem com humanos. O jogo de realidade virtual foi ajustado para tornar os humanos mais solidários com a causa dos Sen-Ti. Além disso, mesmo que não seja possível para os jogadores usarem os headsets uns dos outros, o modo multijogador é possível. Quando Jack e Jin participam juntos de um dos níveis do jogo, encontram outros jogadores que não conhecem, mas que também estão tentando, sem sucesso, resolver o Problema dos Três Corpos.
3. AS NANOFIBRAS DE AUGGIE SALAZAR
As nanofibras de Auggie são outra peça de tecnologia fascinante que existe tanto na série quanto no mundo real. Embora as propriedades do material avançado retratadas na série sejam semelhantes às de seus equivalentes reais, alguns aspectos foram exagerados. Na realidade, as nanofibras são utilizadas em áreas como substâncias eletroquímicas, sensores, biomateriais e filtros, entre outras. Contudo, a incrível força das nanofibras de Auggie é algo que extrapola a tecnologia atual, sendo mais uma criação da imaginação.
A cena do episódio 5 de “O Problema dos Três Corpos”, onde o navio de Mike Evans e seus habitantes são cortados em pedaços pelas nanofibras, não reflete a capacidade real da tecnologia. Além disso, a produção de nanofibras no mundo real é extremamente cara, o que torna a fabricação em grandes quantidades, como mostrado no episódio, inviável. Mesmo que fossem produzidas em tais quantidades, não teriam a capacidade de causar o feito macabro exibido na série.
Essa representação das nanofibras serve mais como um elemento dramático e de suspense na narrativa, destacando o poder e os perigos das tecnologias avançadas em um contexto fictício.
4. VELAS SOLARES: NAVEGANDO NO ESPAÇO COM A LUZ DO SOL
Um dos conceitos mais fascinantes explorados na série “O Problema dos Três Corpos” é o das velas solares. Inspiradas na física real, as velas solares são dispositivos que aproveitam a pressão da radiação solar para propulsionar espaçonaves. Essa ideia, proposta inicialmente pelo astrônomo Johannes Kepler e posteriormente desenvolvida por cientistas como Carl Sagan, utiliza enormes folhas reflexivas que captam a luz solar e a convertem em impulso. Embora ainda estejam em fase experimental, projetos como o LightSail da Planetary Society demonstram que as velas solares podem se tornar uma realidade viável para a exploração espacial no futuro.
Na série, a utilização de velas solares não é apenas uma solução tecnológica, mas também um símbolo da engenhosidade humana diante dos desafios do cosmos. Elas representam uma forma elegante e eficiente de viajar pelo espaço sem a necessidade de combustíveis químicos, reduzindo significativamente os custos e os riscos associados às missões interplanetárias. A narrativa usa essas velas como um ponto crucial para ilustrar como a humanidade pode aproveitar os princípios científicos para expandir sua presença no universo, tornando a exploração espacial mais acessível e sustentável.
Além de sua aplicabilidade prática, as velas solares na série servem como um lembrete do potencial ilimitado da inovação científica. Elas incitam os espectadores a imaginar um futuro onde a luz do Sol não é apenas uma fonte de energia para a vida na Terra, mas também a chave para desvendar os segredos do universo. Esse conceito, ao ser entrelaçado com a trama, reforça a importância da pesquisa científica e da exploração contínua para o progresso da humanidade.
5. O SOL COMO AMPLIFICADOR DE ONDAS DE RÁDIO: UMA LENTE CÓSMICA
Outra ideia inovadora apresentada em “O Problema dos Três Corpos” é o uso do Sol como um amplificador de ondas de rádio, uma técnica enraizada em conceitos astrofísicos reais. Esse método envolve a utilização do campo gravitacional do Sol como uma lente gigante para focar e amplificar sinais de rádio, permitindo que mensagens sejam enviadas através de vastas distâncias no espaço com maior clareza e potência. Na série, essa tecnologia é crucial para a comunicação interestelar, possibilitando contato com civilizações alienígenas distantes.
Atualmente, cientistas estão explorando a viabilidade de usar o Sol como uma “lente gravitacional” para estudar exoplanetas. Esse conceito, conhecido como lente gravitacional solar, aproveita a curvatura do espaço-tempo ao redor do Sol para aumentar a resolução de observações astronômicas. Embora ainda teórica, essa abordagem poderia revolucionar a maneira como observamos o universo, permitindo-nos obter imagens detalhadas de planetas em sistemas estelares distantes e potencialmente identificar sinais de vida extraterrestre.
Na trama da série, o uso do Sol como amplificador de ondas de rádio não só destaca a criatividade e a aplicação prática de teorias científicas, mas também levanta questões sobre a comunicação cósmica e a ética do contato com outras formas de vida. Ao integrar esse conceito à narrativa, “O Problema dos Três Corpos” inspira reflexões profundas sobre nosso lugar no universo e os avanços tecnológicos que podem transformar essas reflexões em realidade tangível.
6. SÓFON: O SUPERCOMPUTADOR A PARTIR DE UM PRÓTON
Em um dos episódios, a cientista Ji Cheng e Thomas Wade colocam os headsets de VR e entram no jogo dos San-Ti, sendo recebidos pela guerreira samurai. Ela explica aos dois sobre o planeta que orbita um sistema de três sóis, resultando em períodos de caos e estabilidade alternados. Essa instabilidade quase leva à extinção da raça San-Ti, mas a maioria consegue sobreviver.
A alienígena narra o recebimento de uma mensagem vinda da Terra e a decisão de tornar o planeta seu novo lar. Temendo o avanço tecnológico da humanidade, os San-Ti criaram o Sófon, um supercomputador com inteligência artificial baseada no núcleo de um próton. Este avanço tecnológico alienígena possui capacidade de processamento extraordinária e se expande para cobrir todo o planeta. Além disso, ele pode interferir nos meios de comunicação e processamento de informações. Sua principal missão é sabotar as pesquisas realizadas em aceleradores de partículas para impedir que os humanos alcancem esse avanço tecnológico nos próximos quatrocentos anos, que é o tempo estimado para a viagem das espaçonaves San-Ti até a Terra.
A ficção científica frequentemente antecipa e especula sobre avanços científicos futuros, como o uso de aceleradores de partículas para descobertas revolucionárias. Na realidade, os aceleradores de partículas são instrumentos poderosos usados para estudar partículas subatômicas e suas interações, desempenhando um papel crucial no desenvolvimento de tecnologias avançadas, como novos materiais, diagnósticos médicos avançados e até mesmo novas formas de energia. A capacidade de explorar e manipular a matéria em níveis fundamentais, como sugerido na ficção científica, pode um dia transformar profundamente nossa compreensão do universo e nossa tecnologia.
CONCLUSÃO
A saga dos San-Ti em “O Problema dos Três Corpos” ilustra não apenas a criatividade da ficção científica, mas também como ela antecipa e especula sobre avanços científicos futuros. A narrativa nos apresenta o Sófon, um supercomputador baseado em inteligência artificial, desenvolvido pelos alienígenas para manipular tecnologicamente seu ambiente e interromper as pesquisas humanas em aceleradores de partículas. Essa representação reflete uma visão fascinante de como a ciência poderia evoluir, explorando conceitos teóricos avançados como a manipulação de partículas subatômicas para alcançar novos patamares tecnológicos.
Na realidade, os aceleradores de partículas são fundamentais para a pesquisa científica atual, permitindo-nos estudar a estrutura fundamental do universo e desenvolver tecnologias inovadoras. Essas máquinas poderosas não apenas nos ajudam a entender o mundo ao nosso redor em níveis subatômicos, mas também têm o potencial de transformar nossa tecnologia e nosso conhecimento científico de maneiras que a ficção científica apenas sugere. Assim, “O Problema dos Três Corpos” não só entretém, mas também nos desafia a considerar os limites e as possibilidades do progresso científico e tecnológico, inspirando reflexões sobre o futuro da humanidade no cosmos.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.