Planeta dos Macacos: A Inversão da Sociedade
A Crítica Social Disfarçada em um clássico da Ficção Científica
Desde a década de 1960, a obra se tornou um clássico marcante da ficção científica. Um livro que surpreendeu a crítica e chamou a atenção de produtores para um filme memorável, que se transformou em uma franquia de muito sucesso.
Paulo Bocca Nunes
“Planeta dos Macacos” é um clássico da ficção científica e refere-se a uma franquia de filmes, livros e outras mídias que exploram um mundo onde os macacos evoluíram e se tornaram a espécie dominante, enquanto os humanos são subjugados. A história mais famosa é a do filme de 1968, estrelado por Charlton Heston, que mostra um astronauta caindo em um planeta onde macacos falantes dominam e humanos são selvagens. A franquia também inclui filmes mais recentes, como a trilogia “A Origem”, “O Confronto” e “A Guerra”, e o mais recente, “O Reinado”.
A narrativa é construída como uma alegoria social poderosa, abordando temas como evolução, ética científica, opressão e a fragilidade da civilização humana. Também trata sobre a natureza da inteligência, a relação entre humanos e animais, o poder, a liberdade e a dominação.
Segundo David Hughes, historiador do cinema e autor de The Greatest Sci-Fi Movies Never Made, “Boulle não estava apenas falando de macacos. Ele estava nos mostrando o quão frágeis são as estruturas que sustentam nossa civilização.” Essa leitura amplia a relevância do romance, inserindo-o no debate filosófico e político que marca a melhor ficção científica.
BIOGRAFIA DE PIERRE BOULLE
Pierre Boulle nasceu em 20 de fevereiro de 1912, em Avignon, França. Ele estudou engenharia eletrônica e serviu como engenheiro na Segunda Guerra Mundial. Após a guerra, Boulle começou sua carreira como escritor, produzindo uma série de romances populares. No entanto, foi com “O Planeta dos Macacos” que ele alcançou o reconhecimento internacional. Boulle faleceu em 30 de janeiro de 1994, deixando um legado duradouro na literatura.
PLANETA DOS MACACOS: A OBRA LITERÁRIA INTRIGANTE
Ao longo de décadas, a franquia Planeta dos Macacos construiu um dos universos mais fascinantes da ficção científica, permeando livros, filmes, séries e debates culturais. Mais do que uma história sobre primatas inteligentes, essa saga tornou-se uma poderosa alegoria sobre a condição humana, a civilização, a decadência e o futuro da espécie.
O ponto de partida foi o romance La Planète des Singes, escrito pelo francês Pierre Boulle e publicado em 1963. A história é contada através de uma narrativa paralela: um casal, Jinn e Phyllis, encontra uma mensagem numa garrafa à deriva no espaço enquanto fazem uma viagem de férias. A mensagem contém o diário de Ulysse Mérou, um astronauta humano.
Ulysse viaja com dois cientistas da Terra até o sistema de Betelgeuse, chegando a um planeta semelhante à Terra que dão o nome de Soror. Lá, descobre uma sociedade dominada por macacos inteligentes — gorilas, orangotangos e chimpanzés — enquanto os humanos vivem de forma selvagem.
Capturado, Ulysse é levado à cidade dos macacos e se destaca por sua inteligência. Com a ajuda de uma chimpanzé cientista, Zira, e seu noivo Cornélius, ele aprende a língua símia e tenta provar sua racionalidade. Enfrenta resistência dos orangotangos, especialmente do conservador Dr. Zaius.
Descobertas arqueológicas revelam que os humanos já foram os dominadores do planeta, mas foram superados pelos macacos após se tornarem dependentes e intelectualmente preguiçosos. Com Nova, uma humana primitiva com quem se relaciona, Ulysse tem um filho e consegue escapar do planeta.
Ao retornar à Terra séculos depois, descobre que ela também foi tomada por macacos. Desesperado, Ulysse escreve sua história e a lança no espaço. O livro termina com Jinn e Phyllis rindo da ideia de que um humano poderia ser inteligente o suficiente para pilotar uma espaçonave. A surpresa, no entanto, é sabermos a verdadeira identidade desse casal que lê toda a narrativa de Ulisse.
DA FÁBULA CIENTÍFICA À DISTOPIA CINEMATOGRÁFICA
O sucesso do livro logo atraiu Hollywood, resultando em uma das adaptações mais icônicas da história do cinema: Planet of the Apes (1968), dirigido por Franklin J. Schaffner e estrelado por Charlton Heston. Embora o roteiro se baseie na obra original, há mudanças profundas em diversos aspectos, especialmente no final.
Uma nave terrestre viaja à velocidade da luz com quatro astronautas, testando a teoria da dilatação do tempo. Após 18 meses de hibernação para eles — equivalentes a dois mil anos na Terra —, a nave cai em um planeta desconhecido. A astronauta Stewart morre durante o trajeto, e os três sobreviventes enfrentam um ambiente hostil. Logo descobrem que os humanos locais são primitivos e perseguidos por símios inteligentes que falam, usam armas e cavalos.
O comandante Taylor é capturado e, ferido na garganta, não consegue se comunicar. Aprisionado, ele conhece e acaba se relacionando com uma mulher que ele chamou de Nova. Aos poucos, com ajuda dos chimpanzés Zira e Cornelius, ele se recupera e revela sua inteligência, desafiando as crenças da sociedade símia liderada pelo conservador Doutor Zaius. Perseguidos, Taylor e seus aliados fogem em busca de evidências arqueológicas que comprovem a verdadeira origem daquele mundo — uma revelação guardada nas profundezas da enigmática “Zona Proibida”.
O desfecho do filme é totalmente distinto — e extremamente impactante. O personagem principal, George Taylor, acompanhado por Nova, descobre os restos da Estátua da Liberdade na praia, percebendo que, na verdade, esteve o tempo todo na Terra, em um futuro pós-apocalíptico. Essa cena tornou-se um dos momentos mais célebres da história do cinema, transformando o longa em um símbolo da crítica à destruição provocada pela humanidade.
Para Roger Ebert, crítico de cinema norte-americano, “O final do filme de 1968 é uma das mais poderosas imagens da ficção científica já feitas. Ele encapsula em um só plano as consequências do orgulho humano.” A crítica de Ebert destaca como a mensagem ambiental e antimilitarista do filme se uniu a um forte impacto visual e simbólico.
O sucesso foi estrondoso. A produção deu origem a quatro sequências nos anos 1970, além de uma série de TV em live-action (1974), uma série animada (Return to the Planet of the Apes, 1975) e uma vasta linha de produtos derivados. De fato, o professor Thomas Doherty, especialista em estudos culturais da Brandeis University, afirma: “‘Planeta dos Macacos’ transformou a ficção científica em um campo legítimo para críticas sociais e políticas.”
DIFERENÇAS ENTRE O LIVRO E O FILME DE 1968: REFLEXOS DE SUAS ÉPOCAS
Ao comparar a obra literária de Pierre Boulle com a icônica adaptação cinematográfica de 1968, dirigida por Franklin J. Schaffner e estrelada por Charlton Heston, salta aos olhos como cada uma das versões responde de maneira diferente aos anseios e preocupações de suas respectivas épocas. Ambas tratam do embate entre civilizações — humanos e símios — mas seguem caminhos distintos quanto à mensagem e ao impacto final.
1. Personagens e permanências
Apesar das mudanças no enredo e no tom entre o livro e o filme, a estrutura dos personagens centrais se mantém em grande parte. O protagonista humano, a companheira humana primitiva Nova, e o casal de cientistas chimpanzés — Zira e Cornelius — estão presentes nas duas obras. No entanto, há uma mudança fundamental: o nome do personagem principal.
2. Ulysse Mérou e George Taylor: significados por trás dos nomes
No romance original, o protagonista chama-se Ulysse Mérou — uma referência direta a Ulisses (ou Odisseu), o herói da mitologia grega retratado por Homero na Odisseia. Assim como Ulisses, que empreende uma longa jornada para retornar a Ítaca e encontra sua casa ocupada por usurpadores, Ulysse retorna à Terra apenas para descobrir que ela foi dominada por macacos inteligentes.
Já no filme, o personagem torna-se George Taylor. A escolha do nome mais genérico e anglo-americano dialoga com o clima geopolítico da época, especialmente o contexto da Guerra Fria. O filme não enfatiza uma jornada de retorno como metáfora mitológica, mas sim a tragédia de um colapso civilizacional causado por ações humanas, especialmente pela ameaça de uma guerra nuclear.
3. O final: mitologia e advertência
A diferença mais marcante entre as obras está no desfecho. No livro, a narrativa termina com uma reviravolta mais voltada à sátira e à relativização do ponto de vista humano. A mensagem de Ulysse, lançada no espaço numa garrafa, é lida por um casal de… macacos, que zombam da ideia de que um humano poderia escrever algo tão sofisticado.
Já o filme opta por um final mais direto e apocalíptico. Em uma das cenas mais memoráveis da história do cinema, Taylor vê a Estátua da Liberdade destruída e percebe que está na própria Terra, no futuro. Ajoelhado, ele grita: “Seus miseráveis… vocês conseguiram!”
Essa frase carrega toda a dor da descoberta: após a sua partida, os humanos destruíram a civilização por meio de uma guerra nuclear. A estátua enterrada na areia é o símbolo da queda de uma civilização outrora grandiosa.
4. Ciência, evolução e advertência sociopolítica
O livro trabalha com a ideia de que a decadência da humanidade foi resultado de um longo processo de dependência e estagnação intelectual, enquanto os macacos evoluíram. A ciência aparece como pano de fundo filosófico, um alerta sobre o que pode acontecer quando o progresso não vem acompanhado de responsabilidade. É uma visão assombrosa e profunda, especialmente considerando que a obra foi escrita antes do domínio da engenharia genética, que só se consolidaria décadas depois.
Já o filme, situado no auge das tensões nucleares entre EUA e URSS, adota uma postura mais explícita: a destruição veio da arrogância humana e do uso irresponsável da tecnologia bélica. A “Zona Proibida” é um cemitério do passado humano, um símbolo daquilo que foi enterrado sob as consequências da guerra.
5. Impacto cultural e reflexão
A mudança no roteiro cinematográfico não apenas se adequou ao espírito da época, mas ampliou a discussão sobre os rumos da humanidade. O filme teve forte repercussão entre críticos, cientistas e o público em geral, gerando debates profundos sobre política, ética, ciência e sobrevivência. Foi um raro momento em que a ficção científica e a ciência real subiram ao mesmo púlpito, e o discurso foi claro: as ações humanas podem ser catastróficas para a própria humanidade.
A REINVENÇÃO DA FRANQUIA
Em 2001, a franquia foi reimaginada por Tim Burton em uma nova versão que dividiu público e crítica, mas introduziu a franquia a uma nova geração.
O verdadeiro renascimento viria em 2011, com Planeta dos Macacos: A Origem, dirigido por Rupert Wyatt. O filme apresenta uma origem genética para o surgimento dos macacos inteligentes e é centrado na figura de César, interpretado por Andy Serkis com uso inovador de captura de movimentos. A recepção foi tão positiva que duas sequências foram lançadas: O Confronto (2014) e A Guerra (2017), ambas dirigidas por Matt Reeves.
Christopher Orr, crítico da revista The Atlantic, analisa que “a trilogia moderna é uma parábola sobre poder, responsabilidade e sacrifício. César é talvez o personagem mais profundamente desenvolvido da ficção científica contemporânea.” Já Mark Kermode, crítico britânico da BBC, observa que “César é um novo tipo de herói trágico. Em sua luta, encontramos ecos de líderes como Moisés, Gandhi e Malcolm X.”
Em 2024, a franquia ganhou um novo capítulo com Planeta dos Macacos: O Reinado, dirigido por Wes Ball. Ambientado várias gerações após a morte de César, o filme apresenta uma nova sociedade símia em conflito e o surgimento de uma nova liderança. O personagem Noa, um jovem macaco, passa a questionar a ordem estabelecida por um regime autoritário liderado por Proximus César.
A ORDEM CRONOLÓGICA PARA ASSISTIR AOS FILMES
Lançado nos cinemas em 1968, universo da saga se expandiu em mais nove longas. A seguir, apresentamos a linha cronológica dos eventos, com breves sinopses de cada obra para facilitar a compreensão da narrativa geral da franquia. A maioria dos filmes podem ser encontradas na plataforma da Star+ e Disney+.
1. Planeta dos Macacos: Gênesis (2011) – O cientista Will Rodman testa uma droga para o Alzheimer em chimpanzés. O experimento resulta no nascimento de César, um macaco com inteligência superior, que lidera uma rebelião.
2. Planeta dos Macacos: O Confronto (2014) – Dez anos após a fuga de César, os humanos enfrentam um vírus devastador. César lidera uma sociedade de macacos na floresta, tentando manter a paz enquanto tensões crescem entre as espécies.
3. Planeta dos Macacos: A Guerra (2017) – César enfrenta um coronel humano que lidera uma campanha genocida. O conflito leva César a um destino trágico, mas sua morte pavimenta o caminho para uma nova civilização símia.
4. Planeta dos Macacos: O Reinado (2024) – Anos após a morte de César, os macacos formaram diversos clãs. O protagonista Noa tenta unir os macacos contra a tirania de Próspero, um novo líder que quer reescrever a história dos símios.
5. Planeta dos Macacos (1968) – George Taylor, astronauta da Terra, cai em um planeta onde macacos inteligentes dominam e os humanos são subjugados. A reviravolta final revela que o planeta é a própria Terra, destruída por guerras nucleares.
6. De Volta ao Planeta dos Macacos (1970) – Brent, um novo astronauta, chega ao mesmo planeta em busca de Taylor. Encontra uma sociedade de humanos mutantes subterrâneos e testemunha a escalada da guerra entre humanos e símios.
7. Fuga do Planeta dos Macacos (1971) – Cornélius e Zira viajam de volta no tempo para a Terra do século XX. Suas ações desencadeiam os eventos que levarão à ascensão dos macacos no futuro.
8. A Conquista do Planeta dos Macacos (1972) – César, filho de Cornélius e Zira, lidera uma rebelião dos macacos contra os humanos após anos de opressão.
9. A Batalha do Planeta dos Macacos (1973) – Mostra uma possível convivência entre humanos e macacos após a revolta liderada por César. Porém, tensões internas e externas ameaçam essa paz frágil.
OUTRAS ADAPTAÇÕES
Planeta dos Macacos (2001) – Dirigido por Tim Burton, com Mark Wahlberg. Esta adaptação tem uma estética e abordagem próprias, distanciando-se tanto do livro quanto dos filmes clássicos. O final surpreende com uma inversão de poder ainda mais explícita.
Série animada (1975) – Return to the Planet of the Apes, da NBC, com uma narrativa mais próxima da ficção científica pulp e traços cartunescos típicos da época.
Série de TV (1974) – Live-action com 14 episódios, centrada em dois astronautas que enfrentam dilemas semelhantes ao de Taylor no primeiro filme.
Quadrinhos – Diversas editoras, incluindo Marvel e BOOM! Studios, publicaram histórias paralelas, prequels e até crossovers, como Planet of the Apes/Green Lantern.
CULTURA POP, POLÍTICA E FILOSOFIA
A influência de Planeta dos Macacos vai muito além do cinema. A franquia impactou a cultura pop de forma profunda: brinquedos, camisetas, memes, citações, paródias e referências em desenhos animados e séries como Os Simpsons, Family Guy e Rick and Morty são comuns até hoje. Algumas falas icônicas do filme original ultrapassaram a tela e se tornaram símbolos de resistência e inconformismo, sendo reapropriadas em diferentes contextos culturais ao longo das décadas.
No campo musical, a banda Devo compôs “Planet of the Apes” diretamente inspirada na franquia. O heavy metal também se apropriou da estética e da temática dos filmes, como em músicas do Black Sabbath ou em bandas mais recentes que usam as figuras dos macacos como símbolos de revolta ou distopia.
A moda e os produtos licenciados reforçaram esse impacto, com camisetas, bonés e acessórios estampando símbolos da franquia. Além disso, quadrinhos e videogames exploraram diferentes versões do universo dos macacos.
A série também levanta importantes debates filosóficos e científicos. A teoria da evolução de Darwin, os limites da engenharia genética, os ciclos de violência e opressão, e a natureza da civilização são temas constantes. A jornalista e escritora Annalee Newitz, especializada em cultura digital e ficção científica, escreveu: “Ao contrário de muitas franquias modernas, os filmes dos macacos modernos confiam na inteligência do espectador. Eles nos fazem refletir sobre o que é civilização.”
UM LEGADO DURADOURO
Planeta dos Macacos é uma das franquias mais influentes da ficção científica moderna. Seja em sua versão literária original, nas adaptações cinematográficas, ou em suas reinvenções contemporâneas, a história continua a provocar reflexões profundas sobre o que somos — e o que podemos nos tornar.
Seus personagens memoráveis, seus cenários distópicos e sua crítica incisiva à sociedade humana fazem dessa obra um espelho desconcertante da nossa própria realidade. Um espelho onde, ao vermos os macacos, enxergamos a nós mesmos.
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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.