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Kimi: alguém está ouvindo | não é terror, mas assusta

Pode parecer incrível como um filme de 90 minutos consegue entregar profundidade de personagem envolvido em laços de contemporaneidade que causam os distúrbios da mente e colocam o ser humano dentro de uma redoma quase indestrutível. O filme está disponível na HBO+ desde fevereiro de 2022.

Paulo Bocca Nunes

Um filme perturbador! 

Desde A rede, filme de 1995 com Sandra Bullock, o cinema tem se tornado o meio em que se escancara as articulações corporativas entre os meios digitais e um sistema voltado apenas para as vantagens econômicas, fechando os olhos para aqueles que são a fonte de sua própria riqueza.

Usando referências do clássico de Alfred Hitchcock, de Janela Indiscreta, Kimi é um filme que se move entre o suspense, o thriller, o mistério e a investigação. A trilha musical contribui muito para os momentos em que vamos de um momento a outro do filme de modo a envolver o espectador num jogo que mostra peças cada vez mais perigosas de serem jogadas.

A história segue Ângela Childs, uma jovem que trabalha escutando áudios coletados por uma assistente digital chamada de Kimi, semelhante ao sistema Alexa, para resolver problemas de comunicação entre o dispositivo e os clientes de uma grande corporação de alta tecnologia. Certo dia, ela ouve uma gravação em que registra abusos contra uma mulher e o seu assassinato. Quando Ângela busca comunicar os seus superiores sobre o fato e enviar a gravação para o FBI, ela entra em conflito com forças corporativas e econômicas que querem proteger o valor de mercado do produto ou algo mais. 

O QUE SE PASSA NO FILME

Zoë Kravitz dá o seu melhor para interpretar Ângela, uma agorafóbica depois de uma situação traumática algum tempo antes. O período da história se passa no presente, numa transição de um possível fim da pandemia para a normalidade. O ótimo roteiro de David Koepp nos entrega a história sem atropelar nada, sem deixar situações sem explicação e mostrar por ações ao invés de “contar” para explicar. A ótima direção de Steven Soderbergh, mais as de arte e de fotografia nos entregam detalhes que contribuem para amarrar a trama cada vez mais em seu centro dramático que é Ângela. É impressionante como se consegue fazer um filme de 90 minutos com tanta maestria. Profundidade de personagem, desenvolvimento da trama, solução plausível e sem aquela coisa de forçar a barra. Isso só se consegue com uma direção precisa, que sabe que história vai nos mostrar e como nos mostrar com maestria.

O filme é bem dividido em seus três atos, sendo o primeiro para nos apresentar a personagem Ângela, sua vida encerrada em um apartamento onde trabalha, recebe seu amigo para alguns rápidos momentos de sexo, sua paranoia por limpeza e asseio com álcool em gel, mesmo estando sozinha em casa. Também percebemos que algo muito sério a traumatizou, pois não consegue sair de casa, nem mesmo para ir ao dentista, apesar de dores muito fortes devido a uma problema de canal.

O desenvolvimento do segundo ato em que ela começa a investigar o áudio suspeito e a sua luta para convencer seus chefes de que eles precisam chamar o FBI para que ela entregue a pendrive com o áudio, vai não apenas nos entregando mais sobre a personagem, como também vai nos mostrando o começo de uma mudança nela. No segundo ato, sabemos o que a levou a ter coragem para sair de casa: não foi apenas para levar a pendrive à empresa para quem trabalha, mas o que ela ouviu tem a ver com o seu próprio trauma.

O que torna o filme assustador são as coisas muito pessoais de Ângela, que ela própria descobriu e acreditava ser de conhecimento apenas dela. Como, por exemplo, a empresa sabia os motivos que tornaram Ângela uma agorafóbica, ou como o sistema de segurança da empresa havia capturado em imagem o fundo da íris de seu olho para garantir a sua entrada e ter acesso à empresa, sem que ela soubesse e quando e como isso havia sido feito. Os questionamentos de Ângela para esses fatos a deixa mais frágil, pois ela percebe o quanto todos estão tremendamente expostos sem ter a menor noção disso.

O terceiro ato é a perseguição que ela passa a sofrer pela segurança da própria empresa para ter a pendrive. Tudo o que se desenvolve e acontece nesse ato está muito bem amarrado com o primeiro ato. Exatamente aí que a referência à Janela indiscreta se mostra eficiente, mas não da mesma forma que no filme de Hitchcock.

O roteiro apresenta os traumas psicológicos causados pela situação mundial que se alonga desde 2020 até 2022 e como isso afeta Ângela. Soderbergh nos prova que um filme considerado curto para os padrões de Hollywood, não é um filme vazio se o roteiro é bem construído e o diretor tem a capacidade de contar tudo sem perder tempo e sem gastar a paciência do espectador.

A fotografia sabe usar os seus recursos para contar a história com imagens. No primeiro ato, isso acontece quando Ângela fica enclausurada no seu apartamento enquanto trabalha e observa as janelas dos prédios vizinhos. Quando vamos para o terceiro ato, o filme ganha um status de thriller e a ação no momento de fuga de Ângela coloca o espectador dentro da história.

Kimi: alguém está ouvindo irá ser lembrado por muito tempo! É um grande filme que, mesmo sendo simples, tem uma profundidade que só um grande mestre pode nos dar.

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Paulo Bocca Nunes é professor de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade. Especialista em Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira. Especialista em Cultura Indígena e Afro-brasileira. Escritor. Contador de histórias.